Zoo: o refúgio selvagem de Lisboa que não confina
VIDA ANIMAL Com 136 anos de história, o Jardim Zoológico de Lisboa assistiu a mudanças de regime, guerras e agora uma nova pandemia, mas nem por isso a vida para. “Mantém-se tudo igual, menos o público”, conta José Dias Ferreira.
Em Sete Rios, a labuta de ouros tempos deu lugar a estradas quase vazias numa altura em que o segundo confinamento nacional começou a adensar-se. O corrupio de autocarros turísticos carregados de grupos e crianças é uma realidade que pertence ao passado, deixando os largos corredores do Jardim Zoológico de Lisboa à mercê dos mais de muitos pavões que por ali circulam. São estes os únicos utilizadores dos bancos de madeira espalhados pelo recinto, contemplando o refúgio que, por estes dias, é animado apenas pelos sons das aves e das cascatas. “É estranho ver isto vazio, sem visitantes”, desabafa José Dias Ferreira, curador de mamíferos, enquanto o DN o acompanha na sua rotina diária. Em passo acelerado e discurso entusiasmado, guiou-nos por uma visita aos bastidores do zoo onde trabalha há mais de duas décadas. “[Estar aqui] é muito terapêutico. Tenho um carrinho de golfe, mas ando sempre a pé cerca de oito a 12 quilómetros por dia”, conta.
Depois de ter encerrado os portões em março e reaberto em maio, as visitas foram retomadas com limitações – espaços como a baía dos golfinhos ou o reptilário, por exemplo, mantiveram-se inacessíveis para evitar o risco de contágio de covid-19. O teleférico, posto de vigia que permite uma visão ampla do parque, não voltou a funcionar. José Dias Ferreira lamenta que, dez meses depois do primeiro encerramento, o zoo volte a fechar, embora acredite que é preciso pensar “na parte positiva”. “A área nuclear é a dos animais, que nunca pode parar.” A limpeza dos espaços, o acompanhamento veterinário e a alimentação são tarefas diárias e inadiáveis, pelo que foi preciso colocar em prática um plano de contingência para as equipas. As duas centenas de trabalhadores estão, desde o início da pandemia, divididas em dois turnos de 14 dias, obrigando a uma maior “polivalência e flexibilidade” nos afazeres de cada um. Além disso, é preciso garantir que os dois mil animais que ali vivem estão em segurança e não correm risco de contágio através dos tratadores, evitando situações como a que aconteceu em San Diego, na Califórnia. Três dos gorilas do Zoo Safari Park foram infetados pelo novo coronavírus, conforme divulgado neste mês pelo Departamento de Agricultura dos EUA. Apesar de serem os primeiros casos conhecidos na espécie, não são as primeiras infeções em animais – até agora, já aconteceu a leões, tigres, visons, leopardos, cães e ga
tos. “Ninguém entra nas instalações sem máscara, há desinfeção das mãos e colocámos pedilúvios para desinfetar os sapatos. Já tínhamos esses cuidados, agora mais ainda”, revela.
Menos receita, igual despesa
Para esta família numerosa e multicultural, a lista de compras é extensa, variada e indispensável. A alimentação de todos estes animais é pensada pela equipa de nutrição com base nas necessidades de cada uma das 300 espécies, o que pode significar 1000 a 1500 quilos diários de carne, peixe, fruta, legumes ou feno. Ao DN, Laura Dourado, da equipa de marketing, explica que as contas são pagas através das formas tradicionais de financiamento – pelo apadrinhamento de animais, com o mecenato de várias empresas e doações de supermercados. Uma das componentes importantes, a receita da bilheteira, é, em tempo de confinamento, inexistente. Apesar de não dominar a parte financeira, José Dias Ferreira não tem dúvidas do peso que estes gastos fixos têm nas contas do Jardim Zoológico de Lisboa. “Insetos, carne, folhagens, fenos, vários tipos de ração… é muita coisa”, diz. De acordo com o responsável pelo departamento de compras e logística, Carlos Pedroso, a maior parte do orçamento é gasta em obras e manutenção, seguida da alimentação.
E porque manter um complexo com 18 hectares em condições não é fácil, esse trabalho também não pode parar. Aliás, esta será, porventura, uma das poucas tarefas que beneficiam da ausência de visitantes. Durante a visita do DN, os jardineiros cuidavam da vegetação e outros trabalhadores davam os últimos retoques na obra de expansão que aumentou o espaço disponível para elefantes e girafas. “Aumentámos [o espaço] em cerca de três ou quatro vezes e pusemos alimentadores diferentes”, partilha Dias Ferreira, orgulhoso das novas instalações.
“Quando se tem amor...”
A semelhança destes espaços com os habitats naturais dos animais é muito importante para que se sintam confortáveis, seguros e imperturbados, diz. Apesar de os 18 hectares não esticarem, a abordagem em três dimensões permite a integração de estruturas elevadas para motivar o exercício físico e estimular os instintos naturais de cada espécie. “É o enriquecimento ambiental, que passa por tudo aquilo que colocamos dentro da instalação. É algo que temos sempre de ter em conta”, explica Laura Dourado.
O bem-estar animal vem sempre em primeiro lugar, nem que para isso seja preciso trabalhar mais do que seria habitual. Prova disso é a relação ternurenta entre Ruth Silva, responsável pelos animais selvagens herbívoros, e um dos mais recentes ocapis do zoo. “Entrei a 7 de janeiro [de 2020] e ele chegou no dia 8, por isso tivemos os dois de nos adaptar ao jardim e às pessoas ao mesmo tempo”, conta a jovem tratadora que, com a sua equipa, é responsável por cerca de 40 animais. “Os ocapis são muito curiosos, gostam muito de ver pessoas”, diz, admitindo que depois do primeiro confinamento foi “estranho” para ambos voltar à azáfama habitual de visitantes. Embora a carga de trabalho seja superior, devido à divisão das equipas por turnos, Ruth gosta do que faz e isso ajuda muito. “A rotina é sempre a mesma, é preciso tratar sempre dos animais à mesma hora. Quando se tem amor a eles, não custa nada”, defende. “Aliás, quando estou em casa penso se eles estão bem e quando é que vou chegar para cuidar deles”, confessa.
José Dias Ferreira acredita que esta será uma fase passageira, mas reconhece que a quebra de receitas prejudica a atividade do zoo. “Quando pensamos em jardins zoológicos, temos de pensar também no papel cada vez mais relevante que temos no financiamento de programas de conservação”, aponta com conhecimento de causa. Além de curador, é também coordenador europeu do Programa de Reprodução de Leopardos-da-Pérsia, espécie que o Jardim Zoológico de Lisboa ajudou a reintroduzir na região do Cáucaso.
Outro exemplo prende-se com o apoio dado a um projeto de recuperação da fauna e da flora nas zonas mais afetadas pelos grandes incêndios na Austrália, que mataram milhares de coalas. Ao todo, o zoo coordena quatro programas de conservação e financia outros nove. “Se não houver receitas de bilheteira, também não há dinheiro para financiar esses projetos”, diz.
O Jardim Zoológico de Lisboa, por estes dias um verdadeiro refúgio selvagem no coração da cidade, voltou a encerrar portas no dia 15 de janeiro e espera regressar em breve para continuar a sua missão.