As ilhas do ontem e do amanhã: mudar de dia em quatro quilómetros
CIÊNCIA VINTAGE As grandes solidões marítimas do Pacífico são atravessadas pela Linha Internacional da Data. Aí, uma viagem de poucos quilómetros equivale a um salto de 24 horas.
A7 de agosto de 1987, a temperatura da água do mar nas proximidades das duas ilhas Diomedes, no estreito de Bering, rondava os 7ºC. O nevoeiro denso tecia um manto de invisibilidade entre as ilhas separadas por quatro quilómetros de mar ártico. Nestas condições, a norte-americana Lynne Cox venceu a nado a distância que lhe permitiu superar o esforço físico, mas também quebrar a golpes de natação a “Cortina de Gelo”, termo cunhado pela Guerra Fria para designar a fronteira que separava as ilhas Diomedes.
Ao alcançar a praia de cascalho da ilha Diomedes Maior, Lynne Cox tornou-se a primeira mulher a nadar entre os Estados Unidos da América, então presididos por Ronald Reagan, e a União Soviética, governada por Mikhail Gorbachev. Há mais de uma década que a nadadora nascida em 1957, e que trazia no currículo a travessia a nado dos 24 quilómetros do estreito de Cook, na Nova Zelândia, aguardava pela autorização para unir por mar leste e oeste. Autorização que chegou por parte das autoridades soviéticas poucas horas antes do feito.
Quatro quilómetros que não só simbolizaram a aproximação entre o ponto mais a leste da União Soviética (a ilha Diomedes Maior, desabitada) e um dos pontos mais a oeste dos Estados Unidos da América (a ilha Diomedes Menor, com pouco mais de cem habitantes), como também serviram a Lynne Cox para empreender uma viagem no tempo.
Nas duas horas e cinco minutos de percurso a nado, a atleta cruzou a fronteira imaginária denominada Linha Internacional da Data (LID), ou Linha Internacional da Mudança da Data. Meridiano que corre do Ártico à Antártida, ao longo de todo o oceano Pacífico, ziguezagueando, ora para leste ora para oeste, tendo por referência o meridiano 180º, “evitando” cruzar territórios e áreas habitadas.
Quis a geografia posicionar as duas ilhas Diomedes exatamente a meio caminho a partir da LID nas latitudes no meridiano 168º Oeste. O território rochoso redescoberto pelo navegadorVitus Bering, oficial e explorador dinamarquês ao serviço do Império Russo, a 16 de agosto de 1728 (dia de São Diomedes de Tarso), obriga a mais do que a viagem de quatro quilómetros que, no inverno ártico, se empreende a pé sobre o mar gelado, tal como o povo inuit o fez por longo tempo. Atravessar a LID exige a mudança da data. Na prática, cruzar a linha de leste para oeste determina que se avance um dia no calendário. Supondo que é uma da manhã de 1 de janeiro de 2021 na ilha Diomedes Maior, será uma da manhã de 31 de dezembro de 2020 na ilha Diomedes Menor.
Desta forma, nos poucos minutos de viagem entre os dois territórios, gera-se um percurso de 24 horas que, inclusivamente, leva a que se denomine a Diomedes Maior como a “Ilha do Amanhã” e a Diomedes Menor como a “Ilha do Ontem”. Singularidade que inspirou o intelectual italiano Umberto Eco a ficcionar em 1994 sobre esta possibilidade de viagem no tempo. Em A Ilha do Dia Antes, o protagonista, Roberto della Griva, mantém-se num navio imobilizado no mar, com vista sobre uma ilha que reside do lado oposto da fronteira traçada pela LID: “Meia-noite de sexta-feira, aqui no navio. É meia-noite de quinta-feira na ilha. Se da América para a Ásia viajas, perdes um dia; se, no sentido contrário viajas, ganhas um dia”, escreve o filósofo e bibliófilo, falecido em 2016.
Peculiaridade do meridiano 180 º que se repete nas mais de duas dezenas de milhares de quilómetros que percorre. Ainda a norte das Diomedes, a LID corre a leste da ilha Wrangel (Federação Russa). Atravessadas as Diomedes, a LID curva para oeste dos 180 º e passa a oeste da ilha de São Lourenço (pertencente ao Alasca) para, mais a sul, separar novamente os Estados Unidos da Rússia, no grande arco insular onde, findo o arquipélago das Aleutas, este se liga às ilhas Comandante (Rússia). Já abaixo do equador, a LID circunda o Kiribati, país insular do Pacífico Central, o primeiro à escala global a dar as boas-vindas ao novo dia, fletindo para leste quase alcançando o meridiano 150 º Oeste. A sul do Kiribati, retorna a oeste, passando entre a Samoa e a Samoa Americana, dois territórios que distam perto de 80 quilómetros, embora vivendo em dias diferentes.
Na miríade de territórios insulares que povoam esta região do Pacífico a LID “brinca” com a viagem de 24 horas: Tokelau, Wallis e Futuna, Fiji, Tonga, Tuvalu, encontram-se a oeste da referida linha e têm a mesma data. As ilhas Cook, Niue e Polinésia Francesa estão a leste da LID e vivem num dia antes.
Traçando uma linha imaginária que cobrisse os 360 º do globo terrestre no sentido dos polos, veríamos a LID unir-se num grande círculo ao meridiano de Greenwich, aquele que divide o planeta em ocidente e oriente e a partir do qual se estabelecem os fusos horários, mais uma hora ou menos uma hora partindo do meridiano 0º.
Corria o século XIX quando o engenheiro ferroviário e inventor canadiano Sir Sandford Fleming sugeriu um sistema internacional de fusos horários. Na prática, o planeta ficaria dividido em 24 faixas verticais, cada uma representando um fuso de uma hora. Contas feitas, aos 360 º de circunferência do planeta Terra corresponderiam faixas de 15º de largura longitudinal. O estudo mereceria publicação ainda em 1879 no Journal of the Canadian Institute of Toronto. Em 1883, os caminhos-de-ferro norte-americanos adotavam para aquele território o sistema de Fleming, reduzindo para quatro os fusos horários face às dezenas antes existentes.
Um esforço de uniformização dos fusos horários e consequente Tempo Universal Coordenado (UTC) que haveria de reunir em 1884, em Washington, nos Estados Unidos, a Conferência Internacional de Meridianos, com a presença de 25 países e sob a égide do presidente norte-americano Chester A. Arthur. Numa assembleia dominada pela política internacional, foi escolhido o sistema baseado no trabalho de Sandford Fleming. O meridiano de origem passaria a localizar-se em Greenwich, no Reino Unido, com os restantes fusos contados positivamente para leste (UTC 12+) e negativamente para oeste (UTC 12-), até ao meridiano 180 º, a Linha Internacional da Data.