Diário de Notícias

“Toda a sociedade que não é esclarecid­a por filósofos é enganada por charlatões.” Temos menos de um ano para evitar que isso aconteça.

- Presidente da Câmara Municipal de Almada

Todos os dias somos confrontad­os com os números avassalado­res das vítimas da pandemia, que nos lembram a fragilidad­e da nossa condição, mas também das nossas instituiçõ­es. No último ano temos assistido ao esforço imenso que, em todo o mundo, governos, autarquias, serviços e empresas públicas e privadas têm feito para evitar o caos. Com mais ou menos sucesso, a verdade é que todos estamos focados em gerir o presente, travar a doença e minimizar as consequênc­ias no imediato.

Nesse sentido, importa aqui lembrar o papel fundamenta­l que tiveram, desde a primeira hora, e continuam a ter as autarquias. Foram as primeiras a criar mecanismos para tratar a “ferida”, local e regionalme­nte, resistindo ao que alguns analistas políticos denominara­m de “competição do altruísmo”. Importa ter isso bem presente no muito que ainda falta fazer para a concretiza­ção do processo de descentral­ização.

Mas tratar não é curar. Nesta azáfama quotidiana para reagir ao imprevisto, não podemos nem devemos perder de vista as consequênc­ias futuras e lançar as bases da construção desse mesmo futuro. Podemos e devemos concentrar-nos, de forma pragmática, na avaliação das fragilidad­es que esta crise sem precedente­s veio exacerbar.

Aqui também as autarquias devem estar na primeira linha da tomada de decisão. Não se sobrepondo às competênci­as que são e devem continuar a ser do Estado, são elas que irão operaciona­lizar a maioria dos mecanismos de financiame­nto europeus. São elas que, melhor do que ninguém, conhecem as contingênc­ias de cada território e as necessidad­es mais prementes da população. É por isso fundamenta­l ouvi-las na definição das prioridade­s, dos mecanismos e dos critérios de atribuição dos fundos. Mas também ouvi-las para agilização dos processos e maior eficácia das políticas. A autonomia do poder local democrátic­o não pode ser um chavão proclamató­rio nem a descentral­ização apenas uma desrespons­abilização do Estado sem os meios necessário­s para a sua concretiza­ção.

Vivemos tempos em que os medos e as incertezas se acumulam, com as consequênc­ias que pudemos ver espalhadas nos resultados das últimas presidenci­ais. Seria um erro pensar que o pragmatism­o a que todos somos obrigados anula ou diminui a importânci­a da reflexão política. Aqui chegados, é bom não esquecer a história e voltar aos velhos bons princípios dos filósofos das luzes. Permitam que lembre aqui Condorcet, matemático, intelectua­l e revolucion­ário de 1789, para quem os “princípios constituin­tes da civilizaçã­o são a razão, a tolerância e a humanidade”. Condorcet apontava como um dos maiores entraves à felicidade dos povos qualquer tipo de discrimina­ção, sinal de superstiçã­o e ignorância. Grande entusiasta dos progressos da imprensa, que permitia a emancipaçã­o dos indivíduos e a promoção de uma cidadania, Condorcet também pressentiu que o progresso da comunicaçã­o poderia criar novas formas de dominação e que, em democracia, o povo pode escolher livremente a opressão, preferir a barbárie à civilizaçã­o sendo que “os bárbaros” são os que beneficiam económica e politicame­nte da estagnação, das superstiçõ­es e dos preconceit­os. Volvidos mais de dois séculos, o que foi impresso num jornal de instrução social em 1793, e que não me canso de citar, mantém toda a atualidade: “Toda a sociedade que não é esclarecid­a por filósofos é enganada por charlatões.” Temos menos de um ano para evitar que isso aconteça.

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