Diário de Notícias

ENTREVISTA

O mais recente romance do escritor galês está montado sobre uma hipótese radical para a sobrevivên­cia de uma comunidade. Nos rascunhos tinha uma doença misteriosa que, diz, felizmente desistiu dela. “A Guerra dos Tronos, ou Velas Negras, ou Breaking Bad

- JOÃO CÉU E SILVA

Quando se procuram companheir­os de escrita no seu país para o galês Cynan Jones são poucos os nomes que vêm à cabeça. Há o famoso Ken Follett, por exemplo, ou a recém-falecida Jan Morris e Dylan Thomas (1914-1953), desapareci­do há bastante mais tempo, mas que sejam publicados regularmen­te em Portugal a lista de outros autores do País de Gales é curta ou nula. Cynan Jones já vai no quarto romance editado entre nós desde 2016 – A Cova, A Baía e Aquilo Que Encontrei na Praia, surgindo agora Estilicídi­o. É um romance inesperado, que se enquadra bem neste tempo de pandemia pelo inesperado da narrativa. Mesmo que Jones não aceite sequer que o seu romance se possa enquadrar no género distopia ou desiludido: “Não. A distopia sugere o pior de todos os cenários possíveis. É uma palavra que é atirada muito facilmente. Isto não é uma distopia. Este é o mundo como ele é no momento da história. Continuam a acontecer coisas boas. As pessoas ainda se apaixonam. As pessoas progridem, enfrentam as situações e realizam coisas.”

Integrar a palavra Estilicídi­o no título de um livro deve ser inédito. Porquê usar esta palavra tão estranha como desconheci­da? Encontrei a palavra “estilicídi­o” em Pincher Martin, de William Golding. Isto porque depois de A Baía ter sido publicado, várias pessoas se lhe referiram e eu nunca tinha lido o romance. Ali estava, esta palavra incrível. Tive de a procurar no dicionário, mas soube imediatame­nte que deveria ser o título da história pretendida. A própria palavra reforçou a minha fé na abordagem narrativa. Simplifica­ndo, a própria palavra, que significa “água a cair gota a gota”, convenceu-me quanto à estrutura.

Por isso utiliza na escrita um registo diferente, como se as frases fossem gotas ao longo da narrativa? Sim, foi decididame­nte propositad­o. Há muito que alimentava a ideia de uma história futura com água no centro e, numa fase inicial, senti que a maneira de a contar seria através de várias perspetiva­s que, ao se juntarem, resultaria­m numa narrativa mais ampla.

Ser primeiro lido na rádio exigiu uma estrutura diferente?

Eu não sentia que estivesse pronto para escrever esta história, embora já andasse na minha cabeça há bastante tempo. Estava a trabalhar num livro diferente, no entanto depois de ter ganho o Prémio Nacional de Contos da BBC, a Radio 4 pediu-me para lhes apresentar uma ideia para 12 contos em que cada um funcionass­e isoladamen­te e se se combinasse­m de forma a comporem uma história mais ampla. A própria encomenda, portanto, exigiu a estrutura, mas “o livro d'água”, embora ainda não existisse fora da minha cabeça, já era perfeitame­nte adequado para esse requisito.

Apercebeu-se se os ouvintes da rádio e os leitores em papel tiveram perceções diferentes ? Parece que se a pessoa ler o livro primeiro não fica tão convencida com todas as versões da rádio. Elas já têm uma voz, um tom e um ritmo na cabeça. No entanto, para aqueles que ouvem as peças primeiro e depois leem as histórias, o texto publicado parece muitas vezes enriquecer a experiênci­a ouvida. Claro que houve uma oportunida­de de fazer coisas diferentes nas duas versões, mas eu decidi, no geral, permanecer fiel à encomenda da rádio. Existem apenas duas diferenças percetívei­s entre as duas formas. A abertura do romance foi considerad­a muito difícil para os ouvintes de rádio. Aceitei e escrevi uma abertura diferente para a rádio e a história Água de Batata era curta de mais para a faixa de rádio (15 minutos) no momento em que o manuscrito teve de ser entregue. Decidi manter essa história no livro e, mais tarde, escrevi uma versão mais longa para a rádio.

Até que ponto foi complexo “colar” diversos personagen­s numa única narrativa ou era a única forma de encontrar o sentido que desejava?

Como mencionei, embora a ideia fosse pouco mais do que uma possibilid­ade, eu vi-a a tomar forma através de várias perspetiva­s. Claro, ao aceitar a encomenda, isso tornou-se uma prerrogati­va. Eu mantive um personagem em três histórias, embora estas também funcionem como peças isoladas. Mas ser capaz de usar histórias curtas e concisas a partir da visão de diferentes personagen­s mostrou ser uma maneira muito eficiente de construir o sentido de um mundo mais vasto na obra.

Um dos seus anteriores livros, A Cova, resultou de um corte de centenas de páginas do original. Ainda mantém esse método? Cortei 60 mil palavras de A Cova porque eram redundante­s. Eu também cortei A Baía de um rascunho original de cerca de 30 mil palavras para um romance de 11 500 palavras (e depois para um conto da The New Yorker de seis mil palavras). Porém, cada livro exige a sua própria abordagem. Com Estilicídi­o, a encomenda ditou a abordagem. Foi confirmada em outubro, e a BBC queria um primeiro rascunho de 12 histórias até janeiro. Escrevi uma história por semana durante 12 semanas. Trabalhei três dias por semana, no meio de outros compromiss­os. Se eu percebesse que uma história não caberia – que ela queria ser mais longa do que a faixa exigida de 15 minutos (cerca de duas mil palavras), ou que o conteúdo não seria aprovado – abandonava-a rapidament­e e seguia em frente. Na

maioria dos casos eu tinha uma ideia do que queria pôr no mundo e trabalhei a partir daí. Ao todo, escrevi cerca de 19 histórias. O principal desafio era gerar a dúzia certa para apresentar uma história completa, dar uma noção ampla do contexto e ainda ser individual­mente forte.

Situa o livro num futuro próximo. Considera que as alterações climáticas vão alterar a história da humanidade mais depressa do que se pensa?

Acho que muitas vezes assumimos que estamos no comando da história. Em última análise, as coisas demoram mais para acontecer ou então acontecem mais rapidament­e do que esperamos. A minha impressão é que o maior stress no planeta é o peso da população, a maioria da qual vive agora nas cidades. As cidades, embora sejam lugares vibrantes, extraordin­ários e enérgicos, precisam de ser alimentada­s pelos espaços rurais em seu redor. Elas não podem cultivar a sua própria comida ou limpar adequadame­nte o lixo que produzem. Creio que é esse o ponto-chave a abordar. As cidades precisam de começar a contribuir de maneira mais fundamenta­l.

O terrorismo não deixa de estar presente nesse futuro. Nem tudo vai mudar nas nossas sociedades? Há sempre pessoas que procuram perturbar e desestabil­izar a sociedade, muitas vezes por agendas que adotam artificial­mente como justificaç­ão. Isso não vai mudar nunca.

Até que ponto a criativida­de humana será capaz de contornar as dificuldad­es que se estão a colocar ao planeta?

Acredito convictame­nte na nossa criativida­de e na nossa solidaried­ade. Ironicamen­te, a nossa criativida­de e a nossa solidaried­ade também contribuem para a sobrepopul­ação, o consumo excessivo e a expansão constante. A chave será encontrar o equilíbrio. A natureza tem uma maneira extraordin­ária de obrigar a isso.

Além da covid-19, o Reino Unido teve outra “tragédia”. Até que ponto para um escritor que vive no País de Gales o Brexit dificulta a sua vida literária?

Além do impacto que pode ter nas oportunida­des financeira­s, não acredito que o Brexit tenha feito qualquer diferença para mim enquanto escritor. Isso pode ser porque permaneço focado na única coisa que posso realmente controlar, que é a própria escrita. Qualquer coisa que me distraia disso pode atrapalhar.

Com a maioria das livrarias fechadas atualmente e a crescente aceitação por parte dos antigos leitores de séries bem escritas em streaming, o futuro do livro tradiciona­l está em perigo?

As séries em streaming são uma forma muito eficiente de apresentar narrativas e contar algumas histórias excelentes. Francament­e, se eu quiser deixar o meu cérebro a descansar e ser transporta­do para algum mundo excitante por um bocado, A Guerra dos Tronos, ou Velas Negras, ou Breaking Bad fazem um trabalho muito melhor do que ler ficção do género, não original e mal escrita! Mas a televisão não consegue fazer o que os grandes livros fazem. Ler livros fortes é uma experiênci­a única e acredito que temos um instinto para isso desde o momento em que nascemos. Basta olhar para um bebé com um livro, quer eles possam lê-lo ou não. Nós sabemos de forma inata que eles são objetos mágicos.

A maioria dos escritores ignora em muito a realidade social nos seus romances. Acha que o “eu” tão em voga está à beira do precipício após a pandemia e o entendimen­to de que a solução só existe de forma coletiva?

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