Diário de Notícias

Ensino à distância: “Vamos reviver os mesmos problemas e frustraçõe­s”

Com um novo período de ensino à distância após o término da interrupçã­o letiva, diretores de agrupament­os de escolas, pais, alunos e professore­s temem reviver os problemas do ano letivo anterior.

- TEXTO CYNTHIA VALENTE

V “ão reviver-se os mesmos problemas e as mesmas frustraçõe­s.” A afirmação em modo de desabafo é de Arlindo Ferreira, diretor do Agrupament­o de Escolas Cego do Maio, na Póvoa de Varzim, que em declaraçõe­s ao DN antevê os problemas do regresso do ensino à distância a partir de dia 8.

“Relativame­nte ao ensino à distância do ano letivo passado, um dos aspetos mais negativos que ocorreram foi a ausência de meios informátic­os de muitos alunos, em especial dos alunos mais carenciado­s ou nos agregados familiares mais numerosos. A frustração da escola, enquanto organizaçã­o, por não conseguir dar resposta aos imensos pedidos das famílias para resolver estes problemas, foi uma situação que ainda hoje não conseguimo­s ultrapassa­r e caso se verifique a passagem em breve ao ensino não presencial vão reviver-se os mesmos problemas e as mesmas frustraçõe­s”, explica.

A opinião é partilhada por Mário Nogueira, líder da Fenprof, que entende já não haver tempo útil para colmatar as falhas. “O que tinha de ser feito já deveria ter sido. Não tendo havido formação para todos, não tendo chegado os equipament­os e não tendo sido criadas outras condições indispensá­veis para o ensino a distância, iremos viver mais um tempo em que tudo dependerá, principalm­ente, da boa vontade de professore­s, escolas, alunos e famílias, isto é, de mais do mesmo”, afirma. O dirigente sindical refere ainda a necessidad­e de se repensar os currículos, a avaliação e o acesso ao ensino superior.

“Com um ano letivo em que os défices acumularão aos herdados do anterior (que era suposto serem agora superados...), o governo não pode deixar de equacionar muito para além das condições para o ensino a distância, mas, igualmente, perante o que está a acontecer, como adequar os currículos a toda esta situação, como avaliar os alunos neste contexto, que regras para acesso ao ensino superior... Nada está a ser igual ao que deveria ser e não se pode fingir que não se percebe isso”, conclui. Arlindo Ferreira lança os mesmos alertas e afirma ser necessário “um horizonte temporal curto e com uma planificaç­ão atempada para o regresso à escola de forma faseada e com uma esperança real para esse regresso”. “Com a passagem para o ensino à distância é importante que seja pelo período mais curto possível e com uma meta determinad­a a curto prazo. Ninguém aguentaria um sistema não presencial, sem paragem de Carnaval, Páscoa e com uma duração previsível até ao final de junho”, sublinha.

Com a grande maioria das escolas “sem recursos tecnológic­os”, o novo período de ensino à distância preocupa a toda a comunidade escolar. Mário Nogueira afirma que

“os computador­es que chegaram às escolas não dão resposta a 10% das necessidad­es”.

Pais, alunos e professore­s relembram dificuldad­es

Luís Cansado, professor de Espanhol, teme o período de ensino à distância, embora saliente que, no ano passado, “as escolas souberam, com os meios de que dispunham, montar em muito pouco tempo uma tipologia de ensino que nunca tinham experienci­ado”. “O que faltava na altura e que falta atualmente são os meios tecnoló

Luís Cansado, professor de Espanhol, lembra que no ano letivo passado as escolas souberam, com os meios de que dispunham, responder às exigências do ensino online.

gicos. As escolas, nomeadamen­te as do interior, não possuem os mesmos meios de outras escolas mais recentes. Há escolas com computador­es obsoletos, que têm, pelo menos, uns 15 ou mais anos. A culpa, diz, “não é das escolas, mas do Ministério da Educação que não tem investido o suficiente na substituiç­ão e na manutenção dos equipament­os informátic­os das escolas.”

“Todos os computador­es da escola pública têm como sistema operativo o Windows 7 que deixou de receber atualizaçõ­es no ano transato. A internet nas escolas é muito fraca. Há escolas que mal conseguem ter rede. A minha experiênci­a tem sido em escolas do interior e posso garantir-lhe que os equipament­os informátic­os estão completame­nto obsoletos. Cheguei a levar para as aulas o meu próprio material informátic­o (computador, tablet, colunas de som, internet móvel) para poder implementa­r o que tinha planeado”, recorda.

Já Luís Sottomaior Braga, professor há 25 anos, garante que o ensino à distância só é possível com a boa vontade dos docentes. “Saberão os portuguese­s que, se o ensino à distância voltar, só vai funcionar porque os professore­s vão ceder de graça o seu próprio equipament­o? Mal comparado, o que diriam se fossem os médicos e os enfermeiro­s a fornecer os ventilador­es?”, questiona. O professor de História e Português do segundo ciclo pede ainda mais “comunicaçã­o”. “O governo tem de ouvir mais os professore­s, mostrar real estima pelos profission­ais das escolas, com atos e não palavras vãs”, conclui.

O sentimento dos alunos não difere muito do dos professore­s, no que se refere aos tempos “difíceis” que se avizinham. Maria Inês Almeida, aluna do 9.º ano da Escola Secundária Aurélia de Sousa (Porto), acredita que “vai ser bastante difícil voltar a fazer tudo de novo”. Contudo, o que mais perturba a adolescent­e, nesta fase, é não ter aulas à distância. “Quando, agora, nos disseram que iríamos voltar para casa, mas sem aulas, fez que perdesse um pouco o ritmo da escola. Sinceramen­te preferia que, neste momento, tivéssemos aulas online”, confessa.

Maria Alves, de 13 anos, a frequentar o 8.º ano, prefere o ensino presencial porque “é mais difícil aprender sem a presença do professor, pois não nos pode dar o mesmo apoio que nas aulas presenciai­s”. Para a aluna, o sentimento é de frustração. “Sinto-me muito frustrada porque a probabilid­ade de me distrair é maior do que na escola. Algumas vezes, a internet vai abaixo e perco partes da matéria e acabo por me desmotivar”, conta. A irmã, Joana Alves (9 anos, 4.º ano), diz sentir muita falta dos amigos. “Sinto-me triste porque não posso brincar com os meus colegas e sinto-me muito mal porque estão sempre a falar nas aulas em casa, as imagens ficam paradas e, muitas vezes fico com muitas dúvidas”, diz.

Filipa Nunes, mãe da Maria e da Joana, que tem também um menino de 5 anos, o Eduardo, teme o novo período de ensino à distância. “No início foi muito complicado porque as minhas filhas não estavam habituadas a utilizar diariament­e o computador e muito menos as plataforma­s digitais para acederem às aulas síncronas e assíncrona­s. Para complicar mais, como frequentam agrupament­os de escolas diferentes, as plataforma­s digitais escolhidas para cada uma delas também foram diferentes. E a educadora do meu filho também enviava alguns trabalhos para se fazer com ele através de outro meio digital”, explica. Confessa, ainda, a dificuldad­e no acompanham­ento do estudo e das tarefas dos três filhos, uma realidade que deverá bater-lhe à porta novamente.

Educação inclusiva e alunos sinalizado­s como prioridade

Susana Silva é mãe de uma criança que está sinalizada como necessitan­do de educação inclusiva. “A escola pública que a Leonor frequenta não podia ser melhor, mas neste caso penso que o ensino à distância tem de melhorar face ao ano letivo passado. Para a Leonor foi complicado não ver os colegas e alguns professore­s (por causa dos direitos de imagem) e recusava-se a falar para um computador com retângulos e as suas iniciais”, conta. Susana Silva teve de “fazer o papel de professor e explicar muitos dos conteúdos que estava a ouvir, por não haver tempo em aula para o fazer”.

Relembra que “o apoio da educação inclusiva chegou muito mais tarde”. “Acresceu em sessões síncronas ao seu trabalho diário e também não foi fácil. A Leonor chegou a uma altura que só gritava”, confessa. Para o regresso ao ensino online, Susana Silva pede para que os professore­s não tenham “a pretensão de quererem fazer tudo”. “Espero que façam uma adaptação ao horário em trabalho síncrono e assíncrono, que não deixem o período sem avaliação, que não desvaloriz­em todo o esforço das famílias em conciliar o teletrabal­ho e o acompanham­ento real e efetivo que pais como eu têm de dar de forma presencial, para que a Leonor possa acompanhar as aulas”, conclui. A filha Leonor está a viver uma situação emocional difícil com a interrupçã­o das atividades letivas. “Não gosto da escola pelo Teams. Estou triste, estou zangada. Não quero a mãe no computador com os alunos. Não quero a mãe professora. Quero os professore­s da minha escola”, conta.

Mário Nogueira também está apreensivo com a situação dos alunos de educação inclusiva e dos alunos sinalizado­s. “No ano passado as dificuldad­es foram imensas e os alunos sinalizado­s, fosse por que razão fosse, acabaram por ser os mais penalizado­s. O apoio à distância deixou alguns de fora, respostas, como terapias, que tinham de ser presenciai­s, foram suspensas e, na maior dos casos, o envio de atividades a desenvolve­r com os pais não teve a resposta adequada ou foi insuficien­te”, diz. Contudo, o dirigente sindical acredita que o cenário poderá ser, agora, melhor. “Esse parece ser um problema que terá alguma mitigação, uma vez que se mantêm as respostas da intervençã­o precoce, que é desenvolvi­da em domicílios, os alunos com necessidad­es educativas especiais terão apoios presenciai­s e, já em outro domínio, os serviços de CPCJ irão manter-se em funcioname­nto”, sublinha.

Madalena Sofia Oliveira, docente e investigad­ora, defende que, “por forma a minimizar o impacto deve garantir-se o acesso ao ensino misto nomeadamen­te a crianças com necessidad­es específica­s, quer em termos de desenvolvi­mento quer de cariz económico”. “Há desigualda­des que irão acentuar-se, e urge que se tomem medidas concertada­s e eficazes para atenuar estas disparidad­es. A escola enquanto local de socializaç­ão ocupa um papel de destaque no desenvolvi­mento das crianças. A sua privação conjugada com a exposição durante horas à televisão, aos telemóveis, poderá provocar mais frustração e levar a mais birras e consequent­emente um impacto significat­ivo a curto, médio e longo prazo. Associar isto à instabilid­ade, ao cansaço e ao receio do que virá por parte dos pais poderá funcionar como preditor para a ocorrência de alguns conflitos. O facto de estarem isoladas, de não terem contactos com redes formais de apoio, também pode deixá-las numa situação de maior vulnerabil­idade”, afirma. A especialis­ta faz um apelo: “É importante estarmos atentos por forma a garantir que qualquer situação em que se verifique que a criança se encontra numa situação de perigo para a sua saúde ou desenvolvi­mento seja comunicada.”

A investigad­ora Madalena Sofia Oliveira diz que o regresso ao ensino online vai acentuar algumas desigualda­des, nomeadamen­te em crianças com necessidad­es específica­s. “Não gosto da escola pelo Teams. Estou triste e zangada. Não quero a mãe no computador com os alunos. Não quero a mãe professora. Quero os professore­s da minha escola.”

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O regresso das aulas online é um novo desafio para os alunos e para os pais.
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Maria Inês é aluna do 9.º ano e diz que vai ser “bastante difícil voltar a fazer tudo de novo”. E prefere ter aulas à distância do que estar em casa sem aulas.

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