Diário de Notícias

Ainda há um bastião do PCP no Alentejo

Anos “dourados” que se seguiram ao 25 de Abril na pequena freguesia de Avis ajudam a explicar uma das únicas duas vitórias do candidato apoiado pelo PCP. A outra foi Pias.

- TEXTO ROBERTO DORES

Já se fazem horas de almoço, mas antes de se sentar à mesa Maria Custódia Cóias sai de casa para o seu passeio higiénico. Percorre em passada generosa a Avenida 25 de Abril, traduzida num corredor de laranjeira­s que é a porta de entrada de Alcórrego (concelho de Avis). Vai pelo meio da estrada com a firme confiança de que raramente passam carros. “Isto está deserto. Uns estão confinados, outros fugiram da terra. Cafés e restaurant­es fechados. Uma tristeza”, desabafa, sempre de sorriso aberto. Explica que “os tempos não estão para uma pessoa se ir abaixo”, e que se sente privilegia­da por poder “sair uns minutinhos de casa para esticar as pernas. Respira-se logo melhor no resto do dia”.

Só que hoje o passeio é interrompi­do por uns instantes ao ser convidada pelo DN a falar das tendências políticas da sua terra. Já dois habitantes seus vizinhos se tinham apressado a entrar em casa, recusando pronunciar-se, mas Maria Custódia não se fica. “Diga lá o que quer saber, que eu não tenho medo de dizer o que penso”, assume, adivinhand­o a pergunta que lá vem depois de Alcórrego ter mantido fidelidade ao PCP, dando a vitória mais folgada a João Ferreira nas eleições presidenci­ais.

“Desde o 25 de Abril que as pessoas aqui têm queda para o PCP. Seja esquerda ou direita”, começa por explicar, pouco alinhada com ideologias, admitindo que as melhores condições de vida proporcion­adas aos trabalhado­res rurais da freguesia – quase todos – após a Revolução dos Cravos ainda são reconhecid­as pelas gentes da terra.

E eis que o semblante de Maria Custódia fica mais carregado quando recua às décadas de 1950 e 60 para tentar explicar o fenómeno comunista de Alcórrego. “As pessoas trabalhava­m no campo e sofriam muito para pôr comer na mesa”, recorda pegando na própria de experiênci­a de uma infância vivida ao lado de mais dois irmãos. “Não havia nada, os meus pais passaram tantas dificuldad­es”, diz, recuperand­o o sorriso quando relata como se fez à vida.

“Trabalhei nos campos de tomate, pimento, tabaco e cereais, numa fábrica de confeções, fiz cursos de formação, tirei o 6.º ano e depois o 9.º e tive um café. Hoje estou reformada, mas, se tudo falhar, tenho uma hortinha no quintal e comida não falta”, congratula-se antes de se pôr a caminho.

Quem espreita entre quintais evita ser questionad­o, mas há indisfarçá­veis lamentos pelo facto de o candidato do PCP ter perdido para Marcelo Rebelo de Sousa o concelho de Avis. Há cinco anos fora o único município português a carimbar a vitória de Edgar Silva. Sobre o resultado de André Ventura, que arrebatou 23 votos, é que nem uma palavra. Para já.

Passam mais dez minutos de ruas vazias onde é possível ouvir o volume das televisões e o choro a plenos pulmões de uma das poucas crianças que aqui vivem. Da estranha campanha eleitoral apenas sobra um cartaz com a fotografia já rasgada de João Ferreira à entrada de Alcórrego. Como se mais nenhuma candidatur­a por aqui se tivesse feito representa­r.

Lá vem um automóvel que até para em plena avenida. O condutor sai de saco em riste e começa a escolher laranjas. Estranho? “Aqui é mesmo assim. As laranjas são do povo, isto é terra de liberdade. Quer uma? São um espetáculo”, afiança José Carlos.

Começa por recusar falar de política, mas enquanto colhe a fruta deixa escapar que a vitória de João Ferreira “até foi normal”, embora o resultado de André Ventura o tenha deixado de “cara à banda”. Não entende como é que mais de 20 moradores de Alcórrego entregaram o voto ao líder do Chega, conquistan­do o terceiro lugar atrás de Marcelo. “Quem sofreu tanto a trabalhar no campo no tempo da outra senhora não entende este povo”, desabafa.

É a deixa para Joaquim Paulino. Sentado no banco com vista para o Largo 1.º de Maio, pousa o guarda-chuva e um saco de plástico, cruzando a perna enquanto baixa a máscara para acender um cigarro, que é vício de uma vida. Do alto dos 84 anos, testemunha tempos em que trabalhava na “herdade do Camões”, tendo de percorrer cerca de 20 quilómetro­s diários.

“Ia a pé. Mais de hora e meia para lá e outra hora e meia de regresso a casa. De sol a sol, todos os dias. O que nós aqui passámos para enganar a fome”, diz, usando este argumento como “possível” justificaç­ão que fideliza o eleitorado comunista de Alcórrego ao PCP. “Eu não sou do PCP nem quero saber cá de política, mas percebo o voto das pessoas que fizeram os sacrifício­s que eu fiz e que começaram a viver melhor com o 25 de Abril”, assume.

Coloca, como exemplo, o foco na questão do transporte até aos campos agrícolas que começou a ser proporcion­ado aos trabalhado­res à “boleia” da Unidade de Cooperativ­as de Produção 1.º de Maio. “Continuava a ser duro trabalhar no campo, mas já era outra vida mais folgada. O povo tem memória”, remata.

Mais um carro percorre a avenida. Agora é o presidente da junta. Jorge Borlinhas é eleito, obviamente, pelo PCP e corrobora as versões que a população foi desfiando para explicar a vitória de João Ferreira. Mas falta um detalhe que o autarca não deixa passar em claro, quando se fixa nos tempos “dourados” da Cooperativ­a 1.º de Maio, que potenciara­m a extensão da maioria dos votos comunistas até aos dias de hoje.

“Álvaro Cunhal vinha muito a Avis e tinha sempre grande mobilizaçã­o”, relembra o autarca de 42 anos, admitindo que mesmo entre os mais novos de Alcórrego esses tempos tenham acabado por marcar as suas vidas. “Fomos sempre uma terra de luta por melhores condições. Hoje é preciso recordarmo­s isso a alguns que por aí andam”, acrescenta, numa “alfinetada” aos 23 eleitores que preferiram entregar o voto a André Ventura.

Perder Avis 20 anos depois

É preciso recuar a 2001 para nos cruzarmos com a última vez que um candidato apoiado pelo PCP não ganhou no concelho de Avis. Jorge Sampaio superou António Abreu, para 20 anos depois Marcelo Rebelo de Sousa repetir a proeza. Em 2016 este concelho do Alto Alentejo foi o único onde o candidato comunista venceu. Edgar Silva somou 31,31%, contra 27,13% de Sampaio da Nóvoa e 26,58% de Marcelo Rebelo de Sousa. Mas no domingo João Ferreira só “cantou” vitória em Alcórrego, garantindo 84 votos, superando os 76 de Marcelo, os 23 de Ventura e os seis de Ana Gomes. Já no total do concelho de Avis o candidato comunista ficou longe de Marcelo, conseguind­o apenas 28,47% dos votos, contra 43,52%, enquanto André Ventura chegou aos 16,25%.

João Ferreira conseguiu somar 84 votos nesta freguesia de Avis, superando os 76 de Marcelo que, recorde-se, ganhou todos os 308 concelhos nacionais.

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Joaquim Paulino, 84 anos, lembra os tempos difíceis antes do 25 de Abril. “O que nós aqui passámos para enganar a fome.”

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