Respeitar os mortos da pandemia é também travar a eutanásia
Depois de algumas tentativas falhadas, o parlamento aprovou por larga maioria a introdução da eutanásia em Portugal. Votaram a favor o PS, o BE, o PAN, o PEV, a IL, 14 deputados do PSD, incluindo o seu presidente, e as duas deputadas não inscritas. Votaram contra o CDS, o PCP, 56 deputados do PSD, nove deputados do PS e o deputado do Chega. Houve ainda quatro abstenções. As únicas vozes que se levantaram, no dia da votação, para explicar o erro imenso foram a de Telmo Correia, do CDS, e a de António Filipe, do PCP. Mais nenhuma. É importante registar estes factos.
A lei em causa não trata de despenalizar, mas de colocar nas mãos do Estado a decisão de pôr fim à vida humana. Não trata de dar conforto na morte, porque isso alcança-se com cuidados paliativos para todos, mas de garantir que o Estado passará a matar através do serviço nacional de saúde. A lei transpõe uma linha inimaginável, de resto protegida na nossa Constituição quando garante que a vida humana é inviolável, e corresponde a um verdadeiro retrocesso na conquista dos direitos humanos. O caminho certo é o de cuidar, não o de matar.
Na legislatura passada foi possível travar a eutanásia com uma campanha intensa junto de vários deputados do PSD. Para além de todos os argumentos jurídicos e éticos, em vários casos colheu o argumento da falta de oportunidade política. Desta vez, reforçado à esquerda e com um presidente do PSD a favor da eutanásia, o parlamento não foi sensível a um argumento de oportunidade política que deveria ter falado bem mais alto: o escândalo que é aprovar a eutanásia quando milhares de famílias choram os seus familiares mortos pela pandemia, quando a maior preocupação de todos é evitar contrair e transmitir esta infeção de desfecho incerto, quando o país sofre uma profundíssima crise económica e social que só por si provoca doença e morte. Aprovar esta lei nesta altura é desrespeitar o sentimento mais profundo das pessoas.
Por outro lado, quando o Serviço Nacional de Saúde e os seus profissionais estão a braços com uma exigência sem precedente e se desdobram em cuidados muitas vezes para lá do humano, aprovar a eutanásia contra todos os pareceres das ordens profissionais (nomeadamente dos médicos e advogados), do Conselho Superior de Ética para as Ciências da Vida ou do Conselho Superior de Magistratura, só para referir alguns, é de uma arrogância inaceitável. Se a lei avançar, que triste retrato ficará para a história deste ano de 2021.
Penso que estamos perante um desacerto entre o país e o parlamento, arrastado por uma agenda que não aceita ser vencida e insiste e persiste até ter ganho de causa. Felizmente há ainda instâncias que podem introduzir sensatez e travar todo este processo: o Presidente da República e o Tribunal Constitucional. Se o Presidente enviar o diploma para o Tribunal Constitucional e este declarar a inconstitucionalidade, o primeiro terá de vetar e só uma maioria qualificada de dois terços poderá reconfirmar a lei, caso em que a eutanásia ficará pelo caminho. Se o Tribunal não declarar a inconstitucionalidade, o Presidente tem ainda o recurso do veto político. Neste caso, a reconfirmação pelo parlamento não será difícil de obter, mas o Presidente terá a oportunidade de deixar vincada a sua posição, representar muitas e muitos portugueses que não se reveem nesta lei nem a compreendem neste momento e, quem sabe, despertar algumas consciências decisivas no parlamento. Tenhamos esperança!
Professora da Nova School of Law. Coordenadora do Mestrado em Direito e Economia do Mar
A lei (...) corresponde a um verdadeiro retrocesso na conquista dos direitos humanos. O caminho certo é o de cuidar, não o de matar.