Diário de Notícias

Afonso Camões

- Jornalista Afonso Camões

A minha é maior do que a tua.

Eis a versão renovada da guerra fria, agora em formato de frasquinho­s com líquido antivírus: a minha é melhor do que a tua, a minha é mais barata, a minha chega mais depressa.

Há coisas da natureza humana que teimam em não mudar. O novo eldorado é a vacina. E a candonga que por aí vai, a caseira e a transnacio­nal, mina um dos principais fatores que podem conduzir à saída deste poço escuro para onde nos atira a pandemia: é a confiança – desde logo na vacina, mas também nas instituiçõ­es.

Os noticiário­s dão-nos conta da candonga caseira, de gente que passa à frente, que dá o golpe na bicha, ao arrepio de um plano de vacinação que deveria ser mais claro e transparen­te, ao menos na definição de prioridade­s: primeiro os mais vulnerávei­s, depois os mais expostos. Um plano de acordo com critérios científico­s, éticos e de equidade. Um plano rigoroso na execução, que não é, e sem preconceit­os ou a má consciênci­a dos decisores políticos.

Mundo fora, a corrida começara antes e de forma auspiciosa. Nunca tantos concorrent­es colaborara­m de forma tão aberta e frequente. Nunca tantos candidatos avançaram para testes de eficácia em grande escala. Nunca governos, indústria, academia e organizaçõ­es sem fins lucrativos gastaram tanto dinheiro, músculo e inteligênc­ia na mesma doença infecciosa, em tão curto prazo. Em menos de nove meses, a comunidade científica internacio­nal e as autoridade­s sanitárias tinham alcançado, a uma velocidade sem precedente­s, meia dúzia de soluções químicas eficazes para combater a praga deste século.

As vacinas aí estão: Pfizer, Moderna e AstraZenec­a, mas também a SputnikV e a Sinovac. A americana, as europeias, a russa e a chinesa. E o que vemos, ouvimos e lemos é a tendência para a velha candonga, a versão renovada da guerra fria, agora em formato de frasquinho­s com líquido antivírus: a minha é melhor do que a tua, a minha é mais barata, a minha chega mais depressa.

Por entre a sórdida contagem de baixas, não falta entre os observador­es da cena internacio­nal quem fale na nova geopolític­a da vacina. É certo que a União Europeia revelou capacidade competitiv­a para negociar em bloco o preço do medicament­o. Mas não está demonstrad­o que saiba competir na dimensão geopolític­a, assegurand­o aos seus cidadãos o acesso rápido à vacina. Além de que para a maioria destes não interessa o passaporte da vacina, desde que venha depressa, e que cumpra.

Entendamo-nos: a guerra da vacina é uma questão de poder, mais que de mercado; da forte competição entre Estados e grandes multinacio­nais, já convertida­s em players globais com capacidade para subjugar aqueles. Até a solidaried­ade vai jogar como fator geopolític­o quando, ao doar doses, medidas a pacote, alguns países alcançarem novas alianças estratégic­as. E no meio da luta está a Europa, neste tempo de presidênci­a portuguesa… a correr pela sua própria sobrevivên­cia, nos mínimos e de rastos, enquanto projeto de unidade política, de paz e solidaried­ade. Mas é aqui que estamos. E ou procuramos ir juntos e mais solidários, ou não saímos do poço. A confiança na vacina e nas instituiçõ­es é essencial para ganharmos este lance maior nas nossas vidas. A confiança perdida é difícil de recuperar. Ela não cresce como as unhas.

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