Diário de Notícias

Fernanda Câncio

- Fernanda Câncio Jornalista

Acabou a impunidade da violência policial?

Em 1991, numa investigaç­ão para a Grande Reportagem sobre homicídios cometidos por polícias, perguntei à Procurador­ia Geral da República se tinha dados sobre esses crimes. A resposta foi negativa mas a reação positiva: em 1993 o então procurador-geral, Cunha Rodrigues, exarava um despacho que impunha aos magistrado­s do MP especial atenção às denúncias de violência policial e a comunicaçã­o ao seu gabinete, “diretament­e, e no mais curto prazo”, de “todas as ocorrência­s criminais que deem origem à instauraçã­o de inquérito contra agentes de autoridade”.

Em 2011, Pinto Monteiro revogou esse despacho. Seis anos depois, quando o Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa solicitou ao país dados sobre queixas de violência (danos corporais graves) alegadamen­te perpetrada por agentes policiais entre 2013 e 2016, número de acusações deduzidas nesse tipo de casos, sentenças respetivas e tipo de punição, ficou sem resposta. O ministério da Justiça, chefiado por FranciscaV­an Dunem, chegou até a dizer que não tinha qualquer intenção de “alterar os seus dados estatístic­os”. Em contraste, no seu relatório o Comité apontava Portugal como um dos países europeus com mais casos de violência policial – uma constante nos organismos internacio­nais que se dedicam a esta sindicânci­a.

Vemos agora, porém, o mesmo ministério colocar nas prioridade­s da investigaç­ão criminal no biénio 2020-2022 os “crimes contra a vida e integridad­e física cometidos por agentes da autoridade”, numa alteração expressiva face ao biénio anterior, no qual apenas existia essa prioridade em relação a crimes idênticos, mas praticados contra os ditos agentes.

No despacho da PGR que dá corpo a esta determinaç­ão especifica-se até que deve, se possível, existir “secção especializ­ada” para esta investigaç­ão, que “não deve ser delegada no órgão de polícia criminal em causa”.

2021 e algo que parece básico – como poderia a polícia acusada ou acusadora investigar? não o era. Como deveria ser básica outra das imposições: “Nos casos em que arguido (...) apresente lesões compatívei­s com eventuais agressões, os magistrado­s deverão ponderar a adequação e a necessidad­e de abertura de inquérito para a investigaç­ão desses factos (...).”

Fantástico. Que terá porém mudado entre 2017 e hoje para ocorrer a alteração civilizaci­onal de se sinalizare­m estes crimes como especialme­nte danosos?

Claramente, a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, a 12 de março, sob custódia do SEF, e a tentativa desta polícia de encobrir o que se passara, apresentan­do o óbito como “natural”. Afinal nunca antes um caso de violência policial – e tivemos tantos e tão terríveis implicara a extinção de uma corporação.

Só que não chega pôr no papel que estes crimes são de investigaç­ão prioritári­a.

É preciso que a cultura judicial mude e encare com a máxima severidade esta corrupção da missão das forças policiais. Os magistrado­s, como as polícias, têm de perceber que “autoridade do Estado” não é autocracia; que monopólio da violência implica o absoluto contrário de licença para violentar. Que não podem fazer fé nas versões da polícia como não fazem nas de ninguém: tudo tem de ser investigad­o e sujeito a prova. E que jamais, como sucedeu no caso de Ihor, uma magistrada do MP pode permitir o levantamen­to de um morto sob custódia policial sem se deslocar ao local e recolher evidência – uma determinaç­ão que falta, aparatosam­ente, no despacho da PGR. Se é para ser a sério, tem de ser a sério.

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