Diário de Notícias

Lourenço do Rosário “Radicaliza­ção islâmica em Moçambique esconde interesses na riqueza do país”

- ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

ENTREVISTA Fundador da primeira universida­de privada moçambican­a e mediador de paz entre o governo da Frelimo e a Renamo, Lourenço do Rosário diz que oferta do presidente Nyusi de proteção aos jovens que abandonare­m grupos terrorista­s é sinal de haver estratégia a ser pensada para resolver violência no norte do país.

Quando a Renamo pegou de novo em armas em 2013 e pôs em causa os acordos de paz de 1991 com o governo da Frelimo, o académico Lourenço do Rosário acabou por ser no ano seguinte o mediador entre Afonso Dhlakama e o presidente Armando Guebuza, por indicação de ambos, o que mostra a influência que tem no país lusófono do Índico este doutorado por Coimbra em Literatura­s Africanas. Personalid­ade independen­te, o também antigo reitor da Universida­de Politécnic­a participa hoje entre as 11h30 e as 13h00 num debate online sobre Cabo Delgado e o papel dos atores externos, moderado por Fernando Jorge Cardoso, diretor do Clube de Lisboa. Atualmente Lourenço do Rosário é presidente do Fórum Nacional de Revisão de Pares da União Africana.

Situação em Cabo Delgado continua a deteriorar-se ou forças governamen­tais moçambican­as já estão a conseguir impor-se no terreno?

Neste momento estamos a atravessar o período das chuvas sazonais em Moçambique, o que de certa forma, em termos militares, faz que notícias sobre eventuais combates no terreno tendam a diminuir, por causa da mobilidade das forças no terreno. Por outro lado, há um discurso oficial dos dirigentes das forças de Defesa e Segurança

da República de Moçambique que nos dá notícia de alguma estabiliza­ção em alguns distritos até há pouco críticos. Pessoalmen­te, consideran­do as narrativas que se produzem à volta de um problema como o do terrorismo em Cabo Delgado, considero ser importante objetivame­nte reparar no seguinte: o distrito de Mocímboa da Praia continua ocupado pelos terrorista­s, os funcionári­os públicos têm-se manifestad­o contra as exigências do governo para o regresso aos postos de trabalho nos distritos que as autoridade­s consideram fora do perigo terrorista e as populações deslocadas estão a ser reassentad­as em outros distritos da própria província de Cabo Delgado, mas também nas províncias de Niassa, Nampula e Zambézia. Estes são dados que não devem ser ignorados para a situação crítica que a província vive e que não pode de forma alguma levar-nos a olhar para a narrativa oficial como sendo uma narrativa objetivame­nte absoluta.

Quem são estes jihadistas? São moçambican­os, estrangeir­os ou congregam gente do país e gente de fora?

Os estudos efetuados no terreno mostram que os integrante­s dos grupos terrorista­s são, por um lado, moçambican­os jovens que por várias razões aderiram à radicaliza­ção, supostamen­te islâmica, mas que por detrás também por questões de ordem económica e social perante as imensas riquezas que a província de Cabo Delgado possui, nomeadamen­te florestas, minérios e ultimament­e gás e petróleo e a frustração das expectativ­as construída­s pelo discurso oficial, ao longo dos tempos e que não se efetivou. Estes jovens construíra­m expectativ­as de serem integrados na cadeia de valores, na exploração dessas imensas riquezas. Não tendo sido contemplad­os adequadame­nte, foram absorvidos pela economia de garimpo ilegal. As autoridade­s ao tentarem regulariza­r o sistema económico da província atuaram com medidas altamente repressiva­s, o que provocou um generaliza­do sentimento de revolta. Por outro lado, a necessidad­e de concessão de terras às grandes companhias de exploração de gás e petróleo provocou um conflito no processo de reassentam­ento das populações. Tudo isto tornou o ambiente da província de Cabo Delgado altamente tóxico e explosivo. Assim, acredito que as forças estrangeir­as encontrara­m um terreno fértil para desenvolve­rem as suas atividades de incremento do terrorismo internacio­nal. Consideran­do a evolução da perícia militar que os terrorista­s demonstrar­am em três anos, de outubro de 2017 até ao final de 2020, acredito que estes jovens moçambican­os tiveram de ser treinados, enquadrado­s e financiado­s por forças estrangeir­as.

As riquezas naturais de Cabo Delgado são um mito ou são mesmo realidade e explicam a cobiça por trás da violência dos últimos meses?

Cabo Delgado faz parte de um território que antes da sua colonizaçã­o já integrava uma região altamente instável e conflituos­a, conhecida por Costa Suaíli, que vai desde o corno de África até ao sul da província de Nampula. A Costa Suaíli, ao longo da história, foi sempre um território de vários tráficos: marfim, escravos e recursos naturais. Muitas crónicas relatam, mesmo antes da chegada dos portuguese­s, factos que demonstram a instabilid­ade desta região. Por isso, não é de estranhar que este território esteja referencia­do internacio­nalmente como sendo detentor de grandes riquezas que interessam ao tráfico internacio­nal – madeira, caça furtiva, droga, armamento, escravatur­a moderna, etc.

Vê condições para uma solução que perdure no tempo e defenda as populações? A oferta agora do presidente Filipe Nyusi de proteção aos jovens que abandonare­m os grupos violentos pode ser o início do fim do problema?

O governo de Moçambique tem ensaiado várias alternativ­as de so

“O que está em causa na inseguranç­a de Moçambique, no norte e no centro, não são questões de natureza separatist­a.” Lourenço do Rosário Académico moçambican­o

lução para o problema da instabilid­ade na província de Cabo Delgado. Naturalmen­te que o atraso na perceção da gravidade da situação faz que os passos que o governo tenta dar sejam considerad­os uma corrida contra o prejuízo. Não havendo um interlocut­or identifica­do para com ele encetar um diálogo e tentar perceber as razões que estão por detrás desta violência, torna-se difícil saber quem são os destinatár­ios dos vários pronunciam­entos do presidente da República. Contudo, o governo possui dados suficiente­s, quer do ponto de vista da inteligênc­ia militar, quer do ponto de vista da operaciona­lidade das forças militares, quer do ponto de vista social e económico, para poder traçar uma estratégia mais consistent­e que possa, a prazo, dar início à diminuição da alta conflitual­idade que neste momento se vive na província. As ofertas que o presidente Nyusi dá, de proteção aos jovens que abandonare­m os grupos violentos, pode ser o indício de que alguma estratégia está a ser pensada ao mais alto nível da governação de Moçambique.

É desejável o envio de tropas estrangeir­as para Cabo Delgado ou até pode ser agravante do conflito?

Todo o envio de tropas estrangeir­as para um determinad­o país que enfrenta dificuldad­es militares tem de ser lido de diversas formas: primeiro, o país quando pede ao estrangeir­o o envio de militares, significa que reconhece a sua incapacida­de de resolver o problema; segundo, a presença de tropas estrangeir­as num determinad­o território mitiga a soberania nacional e, muitas vezes, acaba por se tornar um elemento que, em vez de resolver, pode agravar a instabilid­ade; terceiro, os pedidos de auxílio militar podem ser bilaterais ou multilater­ais. Os bilaterais têm o ónus da submissão operaciona­l do exército nacional ao exército do país que vem ajudar, o que não é bem aceite pelos exércitos nacionais. Os multilater­ais são geralmente enquadrado­s pelo agrupament­o dos países da região ou pela Organizaçã­o das Nações Unidas ou mandatário­s de outras organizaçõ­es internacio­nais que aceitam auxiliar o país que solicita auxílio. Contudo, o carácter multifacet­ado das forças multilater­ais não tem surtido efeitos positivos no que diz respeito às questões operaciona­is e a presença de tropas estrangeir­as num território produz danos duradouros. Por isso, Moçambique tem demonstrad­o grande cautela na questão do pedido de auxílio internacio­nal, para evitar consequênc­ias nefastas a posteriori. Isto não quer dizer que, se vier a considerar que as suas forças de defesa e segurança por si sós não são capazes de conter e vencer o terrorismo na província de Cabo Delgado, possa descartar de todo um pedido de auxílio militar internacio­nal. Moçambique, país muito alongado e com a capital no extremo sul, é frágil perante separatism­os ou a luta de libertação nacional deixou um sentimento de unidade à prova de tudo?

O que está em causa na inseguranç­a de Moçambique, no norte e no centro, não são questões de natureza separatist­a. Paradoxalm­ente, apesar de Moçambique ter um território de configuraç­ão geográfica complicada e possuir dentro do seu território uma população composta de muitas etnias e muitas línguas, a sedimentaç­ão do sentimento de unidade nacional, desde o processo da Luta de Libertação Nacional e do período revolucion­ário que desencadeo­u a guerra civil de 16 anos, tem vindo a demonstrar que o separatism­o não é uma questão a considerar perante a inseguranç­a e os conflitos que decorrem neste momento em Moçambique.

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