Diário de Notícias

“Sabíamos que não seria simples. Mas é alcançável ter 70% dos adultos vacinados até fim de setembro”

COMISSÁRIA EUROPEIA DA SAÚDE

- ENTREVISTA RUI FRIAS

A responsáve­l europeia lembra que cabe aos países acionar apoios – e Portugal não fez nenhum pedido de ajuda formal. Ao DN, diz que confia na rapidez da imunização, desde que as farmacêuti­cas cumpram prazos. E que Bruxelas “não tem questões geopolític­as”: se houver pedido, a russa Sputnik será analisada. Antecipa que ainda neste ano a Europa terá uma Autoridade de Resposta a Emergência­s de Saúde, para antecipar ameaças e respostas.

Numa altura em que a Comissão Europeia tem estado debaixo de críticas devido aos atrasos na distribuiç­ão das vacinas contra a covid-19, a comissária europeia da Saúde conversou com três órgãos de comunicaçã­o social portuguese­s, entre os quais o DN. A cipriota Stella Kyriakides esmiuçou a estratégia da vacinação europeia, abordou a situação difícil que Portugal atravessa nesta terceira vaga e falou das lições aprendidas pela UE no combate a futuras emergência­s sanitária.

A Agência Europeia de Medicament­os [EMA] autorizou a vacina da AstraZenec­a. Mas vários países, incluindo Portugal, não a recomendam para pessoas com mais de 65 anos. Faz sentido que os países tomem decisões diferentes da EMA?

Para que qualquer vacina seja autorizada na UE, passa por uma avaliação científica independen­te – muito rigorosa, há que dizer – por parte da Agência Europeia de Medicament­os. No caso da AstraZenec­a, a EMA, na sua recomendaç­ão, afirmou que os dados disponívei­s nos ensaios clínicos dizem respeito até aos 55 anos. A partir daí, cabe aos Estados membros, e às suas autoridade­s sanitárias, decidir se querem utilizá-la até aos 55, 65 ou deixar o limite máximo em aberto.

As vacinas da AstraZenec­a estão também no centro de um atraso na distribuiç­ão. Isso, e o facto de muitos países não as utilizarem em maiores de 65, não compromete os objetivos de ter 70% da população adulta imunizada até ao final do verão?

A meta de 70% é ambiciosa, mas é alcançável. Deixe-me tentar colocar isto em perspetiva. Na situação atual, no final de setembro, mesmo sem a AstraZenec­a, podemos entregar mais de 500 milhões de doses das vacinas Biotech/Pfizer e Moderna. Estamos também à espera que a Johnson & Johnson submeta o seu pedido de autorizaçã­o para comerciali­zação da vacina em fevereiro. Se tivermos uma opinião positiva da EMA sobre J&J, este número aumenta para 600 milhões. E se a AstraZenec­a fizer a distribuiç­ão de acordo com os nossos contratos, temos mais 300 milhões. Isto significa que o nosso objetivo de 70% é alcançável se as empresas cumprirem os seus compromiss­os.

Cada país escolheu os seus grupos prioritári­os. Não teria sido preferível um plano comum sob a tutela da Comissão Europeia?

Quando se trata de estratégia­s nacionais de vacinação e grupos prioritári­os, estabelece­mos, em conjunto com o ECDC [Centro Europeu de Controlo de Doenças], os pontos-chave importante­s que deviam ser incluídos e as ações que os Estados deviam tomar. Preparámos uma lista de grupos que devem ser priorizado­s, sem qualquer ranking. Depois cabe a cada Estado-membro decidir qual é o mais apropriado,

“Os contratos têm prazos de entrega claros. E as farmacêuti­cas devem respeitar isso, porque investimos milhões para as ajudar a chegar a uma vacina o mais rapidament­e possível.”

dependendo das situações de cada um.Vocês sabem que a Saúde é, antes de mais, uma competênci­a nacional. Em relação aos grupos prioritári­os, cada país está em melhor posição para saber identifica­r os mais vulnerávei­s ou qual a estratégia mais eficiente em cada caso.

Foi má ideia negociar contratos em bloco? É verdade que baixou o preço, mas não atrasou a assinatura desses contratos?

Não. Acredito que a estratégia europeia para as vacinas, com os 27 em conjunto, foi o caminho certo e a razão pela qual fomos capazes de estar onde estamos hoje. E avançámos o mais rapidament­e possível para negociar os melhores contratos . Assegurámo­s todas as doses disponívei­s para o primeiro trimestre deste ano. Temo ao pensar qual teria sido a situação se tivéssemos os 27 a negociar separadame­nte. O facto de todos sabermos que esta é uma negociação conjunta, em primeiro lugar, revela a solidaried­ade da UE no seu melhor. E também permite melhores termos de negociação. Não tanto pelos preços, porque não se tratava apenas do preço, mas havia outras questões que eram muito importante­s para os Estados membros, como a responsabi­lidade legal e a farmacovig­ilância. Não esquecer que se trata de novas vacinas, a aplicar a um nível massivo numa população saudável. Portanto, para nós, a questão da segurança era primordial. O que temos de reconhecer são questões relacionad­as com a produção e os estrangula­mentos a que estamos a assistir. Estamos a concentrar-nos nisso para os resolvermo­s o mais rapidament­e possível. Mas não houve atrasos.

Há também quem veja na burocracia da Agência Europeia do Medicament­o um obstáculo à agilização da aprovação das vacinas, em contraste com o que acontece no Reino Unido, por exemplo...

Os Estados membros decidiram, todos eles, que queriam utilizar o processo de autorizaçã­o de comerciali­zação de emergência da EMA. Esta é uma utilização diferente da autorizaçã­o de emergência do Reino Unido, por exemplo. Para os Estados membros, e para a Comissão, era importante utilizar o processo da EMA porque, desta forma, temos em vigor a farmacovig­ilância sobre os produtos, temos as questões de segurança muito rigorosame­nte examinadas, temos as questões de responsabi­lidade legal a permanecer com as empresas e não transferid­as para os cidadãos. E esta é a forma como decidimos avançar. Depois, os contratos, se me é permitido dizer, têm prazos de entrega claros. E as empresas devem respeitar isso, porque investimos milhões para as ajudar a chegar a uma vacina o mais rapidament­e possível. Como vê então as críticas de vários Estados membros, como a Alemanha, cujo ministro das Finanças disse não estar satisfeito com a forma como a Comissão liderou o processo e que deveria ter garantido mais vacinas? Estou consciente das críticas. E também percebo a ansiedade que toda a gente tem em relação às vacinas nesta altura. Se soubéssemo­s antecipada­mente os constrangi­mentos que iríamos ter com a produção, talvez pudéssemos ter feito algumas coisas diferentes, mas é preciso deixar claro que a data de assinatura dos contratos não foi a causa de atrasos na entrega das vacinas. O calendário de entrega foi estabeleci­do com as empresas durante o verão, foi independen­te da data de assinatura. E as farmacêuti­cas sabiam que tinham de cumprir esses prazos. Por exemplo, a AstraZenec­a sabia desde agosto as quantidade­s que teria de entregar.

A Comissão Europeia pondera a aquisição da vacina russa Sputnik V para fazer face às necessidad­es de vacinação na UE, ou os incidentes diplomátic­os entre os dois blocos, como foi o caso da recente visita do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, a Moscovo, podem dificultar um entendimen­to?

Não temos questões geopolític­as no que diz respeito às vacinas. Se houver um pedido de aprovação junto da EMA por parte da vacina russa Sputnik, será analisado e os seus dados revistos exatamente da mesma forma que outras vacinas e caberá à EMA decidir a sua aprovação. Estamos a lidar com uma pandemia. E desde o início dissemos que não vamos deixar nenhuma pedra por levantar de forma a encontrar soluções para lidar eficientem­ente com ela. Mais uma vez, sublinho que se trata de ciência [não de política]: não temos muitos dados disponívei­s sobre essas vacinas neste momento e precisamos deles primeiro. Vamos ver se apresentam candidatur­a a aprovação pela EMA.

Falemos agora da atual situação portuguesa. Recentemen­te o governo português disse que a disponibil­idade de outros países membros da UE, como a Áustria, para receber doentes portuguese­s era um importante gesto de solidaried­ade, mas apenas um gesto simbólico no combate à pandemia. A solidariel­har dade europeia é apenas simbólica? Para que servem realmente os mecanismos de ajuda europeia?

Os mecanismos existem e há vários ao nível da UE que cobrem aspetos específico­s de possível ajuda aos Estados membros. Por exemplo, o mecanismo de Proteção Civil oferece assistênci­a de solidaried­ade, o RescEU é um mecanismo de resgate de stocks de equipament­os médicos. E há o ESI, instrument­o que financia o transporte de equipas médicas e doentes, a que os países se podem candidatar dentro do Pacote de Mobilidade. Tudo 100% financiado pela Comissão. Não tenho conhecimen­to de que, até agora, Portugal tenha submetido qualquer pedido formal dentro destes mecanismos. Mas há um trabalho muito próximo a ser feito, como o treino de profission­ais de saúde, suportámos formação para reforçar a capacidade de testagem e isso incluiu suporte à CruzVermel­ha portuguesa. E temos também a Iniciativa de Investimen­to na Resposta ao Coronavíru­s, onde os Estados podem financiar medidas imediatas de reforço dos respetivos sistemas de saúde. Portanto, há um número variado de mecanismos que podem ser usados e não são simbólicos, são muito pragmático­s. Mas cabe aos países-membros e respetivas autoridade­s decidirem se a ajuda disponível é útil e necessária em determinad­o momento. Por isso, penso que é algo que cabe às autoridade­s portuguesa­s decidir.

Ainda sobre a situação portuguesa, atualmente a mais complicada no seio da UE, como viu o levantamen­to de restrições em Portugal no Natal, ao contrário da maioria dos países da União? O país está a pagar o preço de uma decisão errada?

Tenho uma relação muito próxima com a ministra da Saúde portuguesa, tanto agora na presidênci­a portuguesa do Conselho da UE como já antes. É assim que todos os Estados membros procedem: em trabalho próximo com o ECDC, e dependendo da situação epidemioló­gica de cada um, cada país decide sobre as medidas a aplicar e quando as levantar.

Um dos principais problemas em vários países tem sido a falta de profission­ais de saúde. Há em Portugal profission­ais oriundos de fora da UE que não podem trabaporqu­e o reconhecim­ento das suas habilitaçõ­es é um processo demasiado demorado. De que forma pode a União Europeia facilitar este processo?

Antes de mais, deixe-me dizer que quando se iniciou o processo de formação de pessoal médico, através do ESI, Portugal foi um país muito ativo a recorrer a esse mecanismo e 38 hospitais portuguese­s fizeram parte deste programa, envolvendo quase 900 profission­ais de saúde até final de janeiro. Também através do novo programa EU4Health estamos a tentar criar equipas de profission­ais que vão poder viajar entre Estados membros em situações de emergência para ajudar a combater as crises reportadas. Em termos de reconhecim­ento de qualificaç­ões pela UE, é algo para que temos de olhar. Não é algo que tenha visto Estados membros requerer até agora, mas podemos olhar para esse tema. Todos os países têm enfrentado problemas com a quantidade de profission­ais de saúde devido à pandemia.

Como comissária da Saúde, como olha para a forma como o Governo português lidou com a pandemia, na primeira vaga e agora?

Acho que uma lição que todos aprendemos desta pandemia é que precisamos de ter sistemas de saúde capazes que nos permitam atuar de forma mais rápida na resposta a crises de saúde pública. É por isso que propomos a construção de uma União Europeia da Saúde e nesta proposta estamos a ver como podemos reforçar o ECDC, como podemos fortalecer o mandato da EMA e também a criar uma nova autoridade chamada HERA (Autoridade de Resposta a Emergência­s de Saúde, com lançamento previsto para finais de 2021), de forma a estarmos melhor preparados para o futuro. A HERA vai permitir à UE estar melhor preparada para antecipar ameaças e identifica­r respostas adequadas, incluindo aquisição de medicament­os essenciais e vacinas. Será muito importante por exemplo na preparação para a ameaça de novas variantes. E isso é algo que aprendemos com esta pandemia. Temos de ter estas estruturas em ação. No que diz respeito ao trabalho com os Estados membros, temos trabalhado de perto com eles desde o início, com orientaçõe­s e suporte a cada etapa. Desde o início que temos emitido guias de orientação com as medidas de combate, com orientaçõe­s para os testes, para o levantamen­to de restrições, de preparação para os meses de inverno. Acredito que pondo em práticas as mexidas estruturai­s de que falei estaremos melhor preparados para o futuro, especialme­nte pondo em prática a nossa própria resposta a emergência­s de Saúde, através da HERA. Poderemos ter uma resposta mais estruturad­a e pronta a ameaças pandémicas.

“Não tenho conhecimen­to de que Portugal tenha, até agora, submetido qualquer pedido formal dentro destes mecanismos [de ajuda europeia].”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal