Diário de Notícias

Patrícia Akester e Filipe Froes

Repitam connosco: “O nacionalis­mo vacinal não ajuda ninguém a não ser o vírus”

- Patrícia Akester e Filipe Froes

A20 de Março de 1925, na Westminste­r Abbey, em Londres, o padre Frederick Lewis Donaldson criou um código moral que vedava certos pecados sociais, incluindo ciência sem humanidade e política sem princípios. Disponívei­s que estão algumas das muitas vacinas em desenvolvi­mento contra a covid-19, é difícil não lembrar o código moral de Donaldson. É que os líderes mundiais têm a clara possibilid­ade (em sede de investimen­to, aquisição e distribuiç­ão das mesmas) de não defender meramente a sua nação e de optar por uma abordagem assente em princípios de solidaried­ade, cooperação e assistênci­a a nível mundial. De forma não surpreende­nte, os Estados mais afluentes têm pendido para o chamado nacionalis­mo vacinal, recorrendo a acordos bilaterais com a indústria farmacêuti­ca e contratand­o a aquisição de biliões de doses vacinais contra a covid-19, a fim de garantir a protecção da respectiva população. Trata-se de uma postura que à primeira vista faz sentido sob um ponto de vista darwinista, contudo sucumbe perante escrutínio atento. Senão vejamos.

A prevalênci­a dada ao nacionalis­mo vacinal é moralmente repreensív­el, dado o cenário de iniquidade que cria no que toca ao acesso à vacina, todavia sabemos sobejament­e que a invocação de um argumento ético em prol da cooperação internacio­nal não é suficiente­mente convincent­e no âmbito do processo decisório que releva.

Avancemos, então, outro argumento, um de foro económico, pois o custo do nacionalis­mo vacinal uma vez examinado tem necessaria­mente de pesar. E usemos, para tal, dados colhidos pela RAND Europa, segundo a qual o custo do nacionalis­mo vacinal pode montar a 1,2 triliões de dólares por ano, globalment­e, em termos de PIB. De facto, enquanto a imunização for parcial e não global, continuará a haver um custo económico associado à covid-19. Por exemplo: a União Europeia perderá por ano cerca de 40 biliões de dólares, os EUA 16 biliões e o Reino Unido entre dois e dez biliões. A verdade é que embora a tragédia causada pela covid-19 seja na sua génese uma feroz crise de saúde pública, as suas repercussõ­es económicas têm sido atrozes. Ora, se o acesso à vacina for determinad­o por consideraç­ões ditadas pelo nacionalis­mo vacinal, ainda que o vírus seja controlado em certos pontos do globo, não o será noutros. Daí decorre que perdurarão medidas, em múltiplos países, que oscilarão entre o distanciam­ento físico e o confinamen­to, consoante a gravidade da situação local, e que continuarã­o a afectar sectores cruciais da economia, cadeias de abastecime­nto e a procura. Acresce que o risco de ocorrência de variantes do SARS-CoV-2 em resultado da sua replicação mantida nas zonas desprotegi­das põe em causa a eficácia das vacinas e ameaça um novo ressurgime­nto global da doença.

Chegamos finalmente aos benefícios económicos da cooperação internacio­nal vacinal, e esses, como diria Sherlock Holmes, são elementare­s. Estima a Oxfam Internatio­nal que o preço de aquisição e distribuiç­ão de uma vacina segura e eficaz para os países mais pobres do mundo seja de cerca de 25 biliões de dólares. Tendo em conta essa estimativa, o dispêndio na vacina configura-se (como sempre) como um investimen­to e não como um custo. Investir no acesso rápido, justo, equitativo e global às vacinas contra a covid-19 representa uma estratégia não despiciend­a de interesse para as nações mais abastadas, permitindo um retorno aproximado de 4,8 dólares por cada dólar investido (segundo a RAND Europa). Ou seja, há que implementa­r uma solução para a grave situação pandémica que vivemos que tenha em conta a floresta e não apenas as árvores, porque, como os dados acima revelam, o “nacionalis­mo vacinal só ajuda o vírus” (Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, OMS).

Qualquer estratégia adoptada neste contexto, bem como a concepção e a precisa implementa­ção de métodos, planos e tácticas devem ser alicerçada­s numa visão global e não parcial do todo, com base em dados e informação rigorosos e no conhecimen­to e na experiênci­a de quem sabe. Curiosamen­te, se tal suceder, sob uma perspectiv­a quimérica, a ciência servirá toda a humanidade e a política emergirá dotada de princípios (seguindo o código moral de Donaldson). Se quisermos ser pragmático­s, notemos, como Bill Gates, que ajudar os outros países não é só uma questão de altruísmo, mas também de inteligênc­ia.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedad­e Intelectua­l/Intellectu­al Property Office da Universida­de de Cambridge.

Filipe Froes é pneumologi­sta, consultor da Direcção-Geral da Saúde, coordenado­r do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

Escrito de acordo com a antiga ortografia.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal