Diário de Notícias

Fernanda Câncio

Sim, é estulto discutir se o Chega é fascista

- Fernanda Câncio Jornalista

Odebate sobre a possibilid­ade de ilegalizar o partido Chega – e agora também sobre a participaç­ão nesse sentido que Ana Gomes entregou na PGR – tem vindo a a ser distorcido pela referência sistemátic­a à proibição constituci­onal de organizaçõ­es fascistas.

De tal modo que a maioria das pessoas deverá estar convicta de que só a suspeição de perfilhar ideologia fascista poderá levar um partido ou movimento a ser objeto de análise pelas instâncias com competênci­a para tal – o MP numa primeira fase e, se este considerar dever avançar com o requerimen­to, o Tribunal Constituci­onal (TC).

Ora o artigo 46º da Constituiç­ão não se limita a proibir esse tipo de organizaçã­o política. O que lá se lê é: “Não são consentida­s associaçõe­s armadas nem de tipo militar, militariza­das ou paramilita­res, nem organizaçõ­es racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.”

Mas a lei 64 de 1978, a única que visa “operaciona­lizar” a norma constante no artigo 46º, tem como título “Insere disposiçõe­s relativas a organizaçõ­es fascistas”, e limita-se a explicitar o que deve ser entendido como tal e que consequênc­ias daí deve advir – a declaração da extinção da organizaçã­o e a punição dos dirigentes com penas de dois a oito anos de prisão, além da perda, para o Estado, dos bens patrimonia­is da mesma. Tal não impede o MP de requerer ao TC a extinção de uma organizaçã­o que considere racista – mas a ser decretada, não terá mais consequênc­ias.

A falha tem uma explicação: a proibição das organizaçõ­es racistas só surge na revisão constituci­onal de 1997 (e a ninguém terá ocorrido alterar a lei 64/78). O que torna compreensí­vel que em 1992, ao requerer ao TC a extinção do Movimento de Ação Nacional, o MP tenha alegado apenas tratar-se de uma organizaçã­o fascista. Em acórdão de 1994, o TC daria como provado o caráter racista e antissemit­a do movimento (e o que tal implica de apologia da violência), mas deixaria no ar a dúvida sobre se podia ser considerad­o fascista, decidindo não a esclarecer porque o MAN já se dissolvera.

Esta dificuldad­e assumida pelo TC – e num caso em que havia prova de exaltação do Estado Novo e de Salazar, de Mussolini e figuras nazis, de uso de símbolos fascistas/nazis e do objetivo de alcançar o poder por via não eleitoral - demonstra o quão estreita é a definição de organizaçã­o fascista da lei 64/78. Sendo de lembrar, já agora, que muitos historiado­res recusam que o Estado Novo tenha sido fascista.

É pois tolice pretender que existe hipótese de o TC avaliar o Chega como fascista. Só a proibição de organizaçõ­es racistas poderia, como aponta o constituci­onalista Vital Moreira, ser acionada no caso deste partido, a partir das declaraçõe­s racistas do seu líder e da propaganda racista do partido – que se têm vindo a intensific­ar.

Podemos, claro, ter dúvidas sobre se o combate político deve passar por pedidos de ilegalizaç­ão de partidos (e nenhuma sobre ser um erro bastante imperdoáve­l fazer pedidos votados ao insucesso).

Certo é porém que a Constituiç­ão não admite partidos racistas – algo que sucede em muitas outras democracia­s e levou já à extinção de vários partidos. E com razão: racismo e xenofobia são violência e apologia da violência. Usados no discurso político têm consequênc­ias demonstrad­as historicam­ente – e na atualidade, na atividade criminosa de partidos como o grego Aurora Dourada.Se calhar é de não esperar por homicídios para se perceber isso.

Não nos deixemos pois desfocar: o artigo 46º é para levar a sério, sim. Como o racismo.

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