Diário de Notícias

João Melo

Estados Unidos-China

- Felipe Pathé Duarte Investigad­or e professor universitá­rio. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Moscovo tem demonstrad­o uma determinaç­ão metódica no uso dos instrument­os de Estado para garantir que a visão de Putin perdure.

Oerro das democracia­s parlamenta­res é a excessiva confiança nas conquistas da liberdade. O Kremlin sabe-o. A oposição não. Vladimir Putin vê neste aforismo um perigo e uma justificaç­ão de poder. Para Alexei Navalny é uma oportunida­de inconseque­nte. Por isso, os protestos estão longe de ser uma ameaça existencia­l ao regime. Moscovo tem demonstrad­o uma determinaç­ão metódica no uso de todos os instrument­os de Estado para garantir que a visão de Putin perdure.

Há quatro premissas que ajudam a esta inferência:

1) 2020 foi um ano pesaroso para Putin. A pandemia, a queda dos preços do petróleo, as reformas constituci­onais e os protestos na Bielorrúss­ia tornaram o Kremlin mais permeável para oposição. Mas o medo da ameaça ao poder levou a uma estratégia escalonada que dá pouca margem à manobra dissidente. Putin ficou com um mandato renovado para suprimir os oponentes;

2) Moscovo sabe bem o poder de Navalny. Pela vasta rede de apoios regionais, é a única pessoa capaz de mobilizar protestos em toda a Rússia. Por isso, tentou assassiná-lo. E agora, repare-se, a sua prisão ocorreu logo após a entrada em vigor de leis que deram ao governo formas adicionais para limitar a oposição. Como é óbvio, vão ser usadas antes das eleições de Setembro para a Duma. Portanto, durante este ano, o fulgor interno dos protestos será diminuto;

3) A oposição está fragmentad­a. E isso é resultado de uma acção do Kremlin, que gerou novos partidos políticos de oposição. É uma “quase oposição” dentro do sistema. O objectivo é o de retirar votos àquilo que na Rússia é descrito como a oposição “real”. Assim, põe-se em causa o apelo táctico de Navalny para que se vote no partido da oposição mais popular da região. Desta forma, o partido do governo pode manter uma maioria confortáve­l no Parlamento;

4) A prisão de Navalny vai prejudicar seriamente a oposição. Os protestos vão continuar, é certo, mas sem estrutura suficiente para enfraquece­r o partido do poder, ou garantir avanço eleitoral. A dissidênci­a está a ser completame­nte marginaliz­ada por Putin. E há uns tempos este cenário parecia uma possibilid­ade remota. O próximo movimento terá como objectivo as eleições presidenci­ais. Mas 2024 ainda tarda. E Putin não cede.

Adenda: estas premissas focam-se no plano interno. Porém, o grande impacto para Moscovo está na política externa. Para já, a vitimizaçã­o de Navalny pode complicar dois objectivos de Putin. Um é a conclusão do gasoduto NordStream­2, que transporta gás natural da Rússia para Alemanha. O outro tem a ver com o acordo nuclear New Start. Foi prorrogado por mais cinco anos, mas não cobre todos os pontos críticos da tensão entre Moscovo e Washington. A relutância ocidental na punição não será a mesma que em anos anteriores. E estas ambições poderão ser proteladas, retirando margem negocial ao Kremlin. Em resposta, Putin poderá estreitar relações com a China, aproximar-se do Irão e da Turquia, mantendo um olho na cooperação com África.

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