João Melo
Estados Unidos-China
Moscovo tem demonstrado uma determinação metódica no uso dos instrumentos de Estado para garantir que a visão de Putin perdure.
Oerro das democracias parlamentares é a excessiva confiança nas conquistas da liberdade. O Kremlin sabe-o. A oposição não. Vladimir Putin vê neste aforismo um perigo e uma justificação de poder. Para Alexei Navalny é uma oportunidade inconsequente. Por isso, os protestos estão longe de ser uma ameaça existencial ao regime. Moscovo tem demonstrado uma determinação metódica no uso de todos os instrumentos de Estado para garantir que a visão de Putin perdure.
Há quatro premissas que ajudam a esta inferência:
1) 2020 foi um ano pesaroso para Putin. A pandemia, a queda dos preços do petróleo, as reformas constitucionais e os protestos na Bielorrússia tornaram o Kremlin mais permeável para oposição. Mas o medo da ameaça ao poder levou a uma estratégia escalonada que dá pouca margem à manobra dissidente. Putin ficou com um mandato renovado para suprimir os oponentes;
2) Moscovo sabe bem o poder de Navalny. Pela vasta rede de apoios regionais, é a única pessoa capaz de mobilizar protestos em toda a Rússia. Por isso, tentou assassiná-lo. E agora, repare-se, a sua prisão ocorreu logo após a entrada em vigor de leis que deram ao governo formas adicionais para limitar a oposição. Como é óbvio, vão ser usadas antes das eleições de Setembro para a Duma. Portanto, durante este ano, o fulgor interno dos protestos será diminuto;
3) A oposição está fragmentada. E isso é resultado de uma acção do Kremlin, que gerou novos partidos políticos de oposição. É uma “quase oposição” dentro do sistema. O objectivo é o de retirar votos àquilo que na Rússia é descrito como a oposição “real”. Assim, põe-se em causa o apelo táctico de Navalny para que se vote no partido da oposição mais popular da região. Desta forma, o partido do governo pode manter uma maioria confortável no Parlamento;
4) A prisão de Navalny vai prejudicar seriamente a oposição. Os protestos vão continuar, é certo, mas sem estrutura suficiente para enfraquecer o partido do poder, ou garantir avanço eleitoral. A dissidência está a ser completamente marginalizada por Putin. E há uns tempos este cenário parecia uma possibilidade remota. O próximo movimento terá como objectivo as eleições presidenciais. Mas 2024 ainda tarda. E Putin não cede.
Adenda: estas premissas focam-se no plano interno. Porém, o grande impacto para Moscovo está na política externa. Para já, a vitimização de Navalny pode complicar dois objectivos de Putin. Um é a conclusão do gasoduto NordStream2, que transporta gás natural da Rússia para Alemanha. O outro tem a ver com o acordo nuclear New Start. Foi prorrogado por mais cinco anos, mas não cobre todos os pontos críticos da tensão entre Moscovo e Washington. A relutância ocidental na punição não será a mesma que em anos anteriores. E estas ambições poderão ser proteladas, retirando margem negocial ao Kremlin. Em resposta, Putin poderá estreitar relações com a China, aproximar-se do Irão e da Turquia, mantendo um olho na cooperação com África.