Guilherme d’Oliveira Martins
O valor da cultura
O enfraquecimento da coesão e da justiça social ameaça a democracia. Precisamos de mediadores na sociedade, na cultura, nas artes e nas ciências.
Como tirar consequências das duas crises que o mundo viveu nos últimos anos? Como dar valor à cultura? A emergência é sanitária, mas há que tomar consciência de que o tempo pós-pandemia vai-nos obrigar a jogar em vários tabuleiros, como numa simultânea de xadrez. Como afirmaram há uma semana António Guterres, Angela Merkel, Charles Michel, Emmanuel Macron, Macky Sall e Ursula van der Leyen, “as crises mais graves pedem soluções mais ambiciosas”.
E a ambição obriga à cooperação multilateral para a recuperação. Com o fim da guerra fria, abriu-se a hipótese de criar uma ordem multilateral que permitisse enfrentar os grandes reptos: a fome e a pobreza extrema, a degradação do meio ambiente, as doenças, as crises económicas e a prevenção dos conflitos. A Agenda para o Desenvolvimento Sustentável 2030 das Nações Unidas está sobre a mesa. Mas o mundo apresenta graves tendências contraditórias, entre os avanços da ciência e das tecnologias e o aumento das injustiças e das desigualdades.
As democracias fragilizam-se perante os nacionalismos e os protecionismos. E, no entanto, a solução dos problemas mais graves obriga à recusa das ilusões isolacionistas e dos discursos imediatistas. É necessário dar mais legitimidade democrática à convergência para uma ordem internacional baseada no multilateralismo e no Estado de direito. A subsidiariedade tem sido mal compreendida – ela exige não só maior proximidade das pessoas, para que se sintam respeitadas e não sejam deixadas para trás, mas também a defesa supranacional da paz e do meio ambiente, incompatível com os egoísmos nacionais e o salve-se quem puder.
Como se tem visto com a pandemia covid-19 a falta de solidariedade levou a que a cadeia de segurança sanitária fosse rompida pelos sistemas de saúde mais fracos. “Enquanto houver covid-19 em qualquer lugar, as pessoas e as economias de todo o mundo estarão em risco.” E o Papa Francisco foi profético nos apelos ao bem comum na “Laudato si’” e em “Fratelli tutti”. Só respostas internacionais e supranacionais coordenadas poderão ampliar, no menor tempo possível, o acesso a meios eficazes para a defesa de todos.
Os meios de diagnóstico, os tratamentos, os serviços de saúde, a prevenção e as vacinas só serão eficazes se houver cooperação. Daí a importância do acelerador de acesso a ferramentas contra a pandemia, lançado pela OMS e pelo G-20, com um sistema de avaliação independente e integral que permita tirar lições das dificuldades e resistências. O mesmo se diga da redução a zero das emissões líquidas de CO2. E temos de impedir que os avanços na luta contra a pobreza e contra as desigualdades sejam postos em causa.
A verdade é que o enfraquecimento da coesão e da justiça social ameaça a democracia. Precisamos de mediadores na sociedade, na cultura, nas artes e nas ciências. “O que vivemos e ainda vamos continuar a viver sob a pandemia é um regime de sociabilidade mínimo, maioritariamente digital, sem corpo e sem as suas expressões, sem experiência permanente do cultural inesperado ou casual, tão determinantes na vida artística”, como disse António Pinto Ribeiro (Público, 30 de janeiro). Eis por que não basta falar de novas tecnologias quando o acesso ainda é desigual. As vacinas têm efeitos lentos. A educação para todos exige prevenção sanitária e regresso gradual ao ensino presencial. Importa insistir na coordenação de esforços na saúde, na economia e na educação. Dar valor à cultura é usar a inteligência, não facilitar. É usar a prevenção redobrada… Assim, ganharemos todos.