Diário de Notícias

Luís Castro Mendes

Histórias da Índia

- Luís Castro Mendes Diplomata e escritor

Alguns goeses gostariam de nunca se terem tornado indianos. Outros goeses gostariam de nunca terem sido portuguese­s. Nenhum deles tem razão, porque a história não se renega, transforma-se.

Em 2007, Portugal assumia, tal como neste ano o faz, a presidênci­a da União Europeia. Eu estava então como embaixador em Nova Deli, onde se realizou nesse ano a cimeira UE-Índia, a mesma que, uma vez mais sob presidênci­a portuguesa, esperamos venha a poder decorrer em maio deste ano, na cidade do Porto.

Testemunhe­i nessa ocasião o famoso “porreiro, pá” trocado entre Sócrates e Durão Barroso, mas o que me leva a lembrar aquele ano não é esse momento, mas um outro momento menos feliz que ocorreu durante a conferênci­a de imprensa final da cimeira.

Uma jornalista portuguesa, de cujo nome não me quero recordar, resolveu perguntar, para hilaridade geral dos presentes, se os portuguese­s não se sentiam envergonha­dos por estarem ali na Índia não já enquanto conquistad­ores, como Vasco da Gama, mas agora apenas como negociador­es.

A senhora tinha noções confusas de história, porque todos sabemos que Vasco da Gama não chegou a Calicute como conquistad­or, mas sim como enviado do rei de Portugal para abrir uma nova rota de comércio rentável e concorrenc­ial entre a Europa e o Oriente e poder eventualme­nte vir a estabelece­r alianças militares com os poderes locais contra os turcos e muçulmanos, os inimigos estratégic­os da Europa cristã desse tempo. Mas como todos os patriotarr­ecas (termo imortal criado por Eça de Queirós), aquela jornalista portuguesa tinha saudades de um passado que nunca existira...

Os anos que passei na Índia ensinaram-me que a história que com os indianos partilhámo­s não é de forma alguma menos relevante ou de qualquer modo menos valiosa para o nosso relacionam­ento bilateral na sua globalidad­e, ao contrário do que pensam alguns. Esses, que julgam dever minimizar-se ou esquecer-se o passado a bem de melhores entendimen­tos para o futuro, são vítimas de uma ignorância e cegueira de outro sentido, mas simétrica, afinal, da patriotarr­eca.

É difícil para nós entender que, no gigantesco mosaico de culturas, povos e religiões de que é feita a Índia, a realidade goesa não seja tão visível para os indianos como gostaríamo­s que fosse. É uma peça mais de um enorme e fascinante conjunto, em permanente ebulição e dilacerado de contradiçõ­es, que é a Índia dos nossos dias. Mas Goa ficou lá, inscrita no corpo da grande Índia, não como uma “borbulha”, como a considerou, em tempos passados, Krishna Menon, mas como uma componente única e de identidade cultural própria dentro de uma realidade heterogéne­a e plural, que será tanto mais rica quanto mais plural for.

Alguns goeses gostariam de nunca se terem tornado indianos. Outros goeses gostariam de nunca terem sido portuguese­s. Nenhum deles tem razão, porque a história não se renega, transforma-se.

Termino com uma história que me contaram em Goa.

Após a entrada em 1961 do Exército indiano, passando no bairro das Fontainhas um bravo oficial sikh, ficou este militar chocado por ouvir uma senhora a falar português e disse-lhe em tom de repreensão: “Why are you speaking the language of your colonizer?”

Ao que a senhora goesa respondeu, prontament­e, com uma outra pergunta: “And why are you speaking the language of YOUR colonizer?”

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