ANA, SÍLVIA, ZITA, CLARA
Como as mulheres estão a mudar a ciência
Odia internacional proclamado pela ONU em 2015 para reforçar o papel da mulher na ciência foi o ponto de partida para entrevistar quatro cientistas portuguesas. Investigadoras que trabalham no departamento de neurociências da Fundação Champalimaud (FC), o que é logo uma mais-valia para quem faz investigação em Portugal. “É um oásis”, “não representa o que passam a maioria dos investigadores”, “compram o que precisamos para os laboratórios”, “as condições são muito boas”, foram algumas das suas afirmações. O que é comum é a grande instabilidade na profissão e a dificuldade em conciliar os estudos avançados com a vida familiar. Podem ser jovens investigadores aos 40 anos, mas dependem de bolsas e de ganhar projetos para ter uma carreira. Ou então, emigram.
Ana Machado, Zita Santos, Clara Ferreira e Sílvia Henriques estão na fase pós-doc, significa que já fizeram o doutoramento e outras investigações avançadas e estão envolvidas em laboratórios liderados por quem está no topo da carreira. Têm entre 33 e 40 anos, quase todas com filhos, maternidade que foi adiada para depois do doutoramento. Dizem que acontece tanto com os homens como com as mulheres, porque esta é uma atividade onde, a nível numérico, a participação de ambos os sexos é semelhante, embora dependa da área científica. Segundo o relatório “Gender in The Global Research Lanscape”, no período entre 2011 e 2015, 49% dos investigadores (27 561) eram mulheres, menos 1374 do que os homens (28 935).
Trabalham com ratinhos e as moscas-da-fruta, manipulam refeições e criam imagens para tentar perceber o que lhes vai na cabeça. E, no futuro – em alguns casos mais longínquo que noutros –, poder ter uma aplicação prática a nível do que se passa a nível do ser humano.
Em tempos de pandemia, muito do trabalho de pesquisa, análise e escrita é feito em casa. Combinado o encontro com as investigadoras junto à Fundação (só se pode entrar nas instalações com o teste à covid-19), pedimos às quatro investigadoras que levassem um elemento que caracterizasse o seu objeto de estudo e, claro, uma bata.
Primeira imagem das cientistas a cair por terra. “Não usamos bata no laboratório”, diz Sílvia Henriques. A segunda ideia é que a investigação não é um ato isolado, antes pelo contrário. É um trabalho de grupo e que, por vezes, atravessa fronteiras para melhor se entender determinado fenómeno. Desde
logo, os animais com que trabalham e que são importados de bancos de espécies internacionais.
Ana Machado, 33 anos, Leiria, engenharia biológica no Instituto Superior Técnico (IST). Doutoramento no MIT Portugal em Bioengenharia. Entrou para a FC em 2010. Projeto: “Ligação entre défices neurológicos e locomotores.”
A investigadora veio para Lisboa aos 18 anos, para estudar no IST e sempre teve interesse pelas neurociências. Gere o seu laboratório e as relações com outros institutos, além de fazer um pós-doc num projeto em que estuda ratinhos com atáxia (sem coordenação), doença que também afeta os humanos. A aplicação prática dos seus trabalhos é uma vertente que lhe interessa, mas sublinha que ainda está numa fase inicial.
Entrou para a Champalimaud em 2010 já a pensar em trabalhar com ratinhos. “Sempre foi um fascínio”, diz. Juntou-se ao grupo da Megan Carey e, entre os vários projetos, interessou-se pela área da locomoção e coordenação. “Perceber, em animais com doenças neurológicas, o que afeta a sua locomoção.” E é o projeto “mais próximo de uma aplicação futura”, justifica. Para já, ainda está na fase de observar, quantificar e perceber o que está de errado.
“A atáxia está associada a uma zona cerebral, o que acontece é que os neurónios não estão organizados e estes animais estão descoordenados. O facto de não se conseguirem coordenar, não suportarem o corpo, não se conseguirem levantar para alimentar, leva à morte”, explica a cientista.
Os ratinhos dão-lhe a “possibilidade de espreitar para o circuito cerebral e perceber o que se está a passar”. Quais são os neurónios que morreram ou como é que as ligações estão feitas para, no futuro, induzir “o que se poderá estar a passar nos pacientes que apresentam exatamente os mesmos problemas”. Acrescenta: “Seria interessante num estudo futuro, observar o comportamento no caminhar dos humanos e saber se existe algo semelhante com os animais e poder criar uma ligação entre a locomoção e o que acontece no cérebro, tanto nos animais como nos humanos.”
Desafios da ciência que espera explicar, mas o que considera ser o seu maior desafio é gerir o dia a dia enquanto profissional e mãe. Tem um filho de três anos e outro de um. “São fases muito exigentes, a disponibilidade de tempo agora é muito mais limitada. Em contrapartida, obriga-nos a ser mais eficiente”, diz. Ainda assim, reconhece que é uma privilegiada.
“Conseguimos publicar vários trabalhos durante a pandemia. Tive o privilégio de ter o apoio do meu grupo de trabalho e em casa, foi fundamental. É importante ter este suporte, quer a nível institucional quer familiar, para ter uma carreira. Estou em teletrabalho, desloco-me ao laboratório quando tenho de realizar tarefas”, explica.
Em 2030, vê-se a aplicar o que agora estuda em laboratório os humanos. “Gostava que a minha ciência, o trabalho que estou a fazer fosse mais aplicável, mais próximo da clínica. Como vou lá chegar e como será o processo? Ainda não sei.” Ir para o estrangeiro não está no seus horizontes, a não ser que leve a família, o que será difícil.
Comparativamente aos seus colegas investigadores no estrangeiros, ressalva: “A FC não representa provavelmente a ciência nas universidades e outros institutos a nível nacional, temos ganho vários projetos e que têm trazido bastante dinheiro para o grupo. É a diferença entre dizer ‘quero esta câmara, este computador, deste reagente’, e ter, e ser um investigador brilhante que não tem recursos. É o grande problema a nível nacional.”
Zita Santos, 36 anos, Fátima. Microbiologia e Genética na Faculdade de Ciências (UL). Doutoramento no Instituto Gulbenkian da Ciência. Entrou para a FC em 2012. Projeto: “Como a dieta influencia a fertilidade”.
A área da fertilidade sempre interessou Zita Santos, inicialmente mais na biologia celular. Vive na capital desde que entrou para a Universidade de Lisboa. Faz investigação com a mosca-da-fruta, está num pós-doc e na esquipa de Carlos Ribeiro, a preparar-se para constituir o seu grupo.
Escolheu as moscas com o objetivo de responder à pergunta: Como compreender o corpo humano? “A nível genético, a mosca partilha a grande maioria dos genes com os humanos. E torna-se um organismo muito atrativo, porque tem um ciclo de vida muito curto (um mês), o que dá uma janela de tempo curta para desenvolver a experiência, o que a nível científico é bastante desejável.”
No seu caso, estuda a nutrição e o metabolismo da mosca através da manipulação da dieta. “Temos acesso a uma comida que é totalmente definida quimicamente, em particular os aminoácidos, adicionamos o açúcar, os líquidos, vitaminas, o que nos permite fazer estudos muito detalhados”, explica.
Experiências que a levaram a provar que a dieta tem influência na fertilidade. “Demonstrámos que os açucares são essenciais para formar os óvulos na mosca. É também muito importante para dizer ao cérebro da mosca que precisa do açúcar, ou seja, há todo um mecanismo que indica que ela tem de comer açúcar para que possa produzir óvulos e ser fértil. Quando removemos o açúcar da dieta das moscas, a fertilidade diminui drasticamente. Indica que a dieta poderá ter implicações na fertilidade, agora, é preciso perceber como.” O seu grupo acaba de obter uma bolsa para continuar a investigação e, como último passo, perceber se determinada a nutrição e metabolismo estão envolvidos no declínio da procriação com a idade.
“Sabemos que as mulheres têm uma janela de tempo limitada para se reproduzirem. Queremos perceber se esta questão dos nutrientes e do metabolismo está relacionada com este declínio, e foi por aí que fomos financiados. A ideia é desenvolver formas de manipular, quer pela dieta quer geneticamente, o organismo de forma a prolongar esta idade reprodutível”, diz
Zita Santos tem três filhos: de 7, 5 e ano e meio. “Ser cientista na altura da pandemia tenha vantagens. Não temos um horário fixo, normalmente gerimo-nos pelos objetivos dos projetos e a fase em que estamos na carreira, mas não é fácil. Os meus horários estendem-se
“Conciliar a profissão com a família é o grande desafio e a investigação exige concentração. São fases muito exigentes, a disponibilidade de tempo agora é muito mais limitada. Em contrapartida, obriga-nos a ser mais eficientes.”
“Seria muito importante ser avaliado cegamente, não é regra geral, mas há cada vez mais tentativas de implementar sistemas desse género a muitos níveis. É a única maneira de se fazer um julgamento idóneo.”
das 07.30 às 02.00, só consigo trabalhar no computador depois de deitar os miúdos.”
Os filhos estavam no infantário, agora encerrados, mas o marido também está em teletrabalho. “Venho à Fundação quando preciso de trabalhar no laboratório. O trabalho de computador é em casa, o problema é que muito do que fazemos precisa de concentração. Escrevi um projeto para a Fundação para a Ciência e Tecnologia durante a pandemia, e foi terrível, e neste ano, vai acontecer a mesma coisa.”
Daqui a 10 anos vê-se com o próprio grupo de investigação, o que poderá acontecer no estrangeiro. “Gosto muito de Portugal, é o meu país de eleição, mas é muito complicado fazer ciência. Fico sempre estupefacta com a qualidade científica que produzimos face ao financiamento que temos. Estarei na FC mais um ou dois anos, estou ativamente à procura”, conta. Se emigrar, será com a família. A Suíça é uma hipótese, até porque o marido viveu lá e está preparado para deixar a careira de militar.
Clara Ferreira, 40 anos, Coimbra, Biologia e Geologia na Universidade de Aveiro. Doutoramento na FC, que acabou na Universidade de Oxford. Na FC desde 2008. Projeto: “Comportamento social em situação de perigo”.
Licenciou-se na vertente de ensino, voltou à estudar para se especializar na investigação. Gostou de dar aulas em Portugal, não tanto em Inglaterra, onde concluiu o doutoramento. “Faltava a investigação. Gosto de comunicar ciência mas num contexto informal.” Está na equipa de Marta Moita.
Investiga a forma como mosca-da-fruta reage a uma situação de perigo quando está sozinha e quando está acompanhada. “Apresentamos um estímulo visual de um predador ou de um objeto em rota de colisão que está a vir contra nós. As moscas estão numa arena em frente a um ecrã que apresenta essa imagem e as assusta. Como não podem fugir, ficam numa posição de imobilidade tónica para evitar serem detetadas, como fazem os outros animais. O que estudei foi perceber o que acontece aos comportamentos de defesa da mosca num contexto social. O que descobri mais pertinente é que respondem umas às outras, demonstram um efeito a que se chama ‘efeito de segurança dos números’. Quando a situação de perigo desaparece e as outras moscas se começam a movimentar, a mosca percebe que já não há perigo e deixa de estar imobilizada.” Ou seja, reagir a a situações em que já não há perigo é desperdiçar energia.
Clara Ferreira estuda a mosca-da-fruta há muitos anos e o que a fascina “é o facto de demonstrarem comportamentos básicos de animais mais complicados”. Acrescenta: “Conseguimos ver quais são os neurónios envolvidos em processar esta informação social para depois impactar o tipo de comportamento que têm. Estudamos um
neurónio a nível sensorial e perceber quais são os outros neurónios envolvidos para que uma mosca que está em imobilidade tónica passe à atividade normal.”
O passo seguinte é estudar as diferenças entre os sexos. “O primeiro estudo foi feito com moscas fêmeas e as moscas macho parece que respondem mais aos sinais das outras, queremos explorar de onde vem esta diferença.”
Está, também, na fase de formar o seu grupo, a maioria dos projetos são do estrangeiro. O companheiro é alemão e faz investigação na Alemanha. Têm duas crianças, de 6 e 1 ano. Na Alemanha, a licença de maternidade é de 14 meses a partilhar por ambos os pais, o que significa que o companheiro pode tirar dez meses, tempo que pode passar em Portugal. Regressou à Alemanha e a gestão familiar está a ser mais difícil.
“A investigação é complicada para quem tem filhos em casa. Acabo por trabalhar de manhã e à noite, para ficar com as crianças à tarde. Em contrapartida, o ambiente de trabalho é ótimo.
O casal prepara-se para juntar a família no estrangeiro, talvez na Alemanha ou em Inglaterra, de onde é a mãe de Clara. “Há mais apoio e estabilidade. Agora, em Portugal, há a tentativa de fazer que os investigadores sejam trabalhadores, mas temos funcionado como se estivéssemos à margem de sociedade, o que não acontece nos outros países. Têm contratos de trabalho, a ciência é valorizada como se fosse uma atividade normal na sociedade.”
Sílvia Henriques, 36 anos, Caldas da Rainha. Bioquímica na Faculdade de Ciências, mestrado em Biotecnologia no IST, onde se doutorou em Biotecnologia e Biociências. Na FC desde 2004. Projeto: “Como as baterias se alimentam para superar carências nutritivas”.
Estudou na Eslovénia, França e Inglaterra, fez um pós-doc no Porto, e depois na FC. Imaginava que iria trabalhar numa empresa ligada à biotecnologia, mas é uma área que ainda não está muita avançada no país. Continua com esse sonho.
A sua área de estudo é microbioma (conjunto de bactérias, fungos, de vírus que habitam os intestinos). Essas bactérias crescem diferentemente consoante a alimentação. “Usando a mosca e dando-lhe a comida que é quimicamente definida, manipulada com grande precisão, conseguimos ver que determinadas bactérias mudam as suas preferências alimentares. Queremos perceber qual é o mecanismo que leva a que estas bactérias em particular alterem o comportamento alimentar da mosca”, explica. Experiências feitas com moscas, que partilham 50% do genoma humano. “Faz que seja elevada a possibilidade de ir aos humanos e encontrar mecanismos idênticos. Além disso, usar a mosca é mais barato e rápido [têm filhos em duas ou três semanas].”
Clara Ferreira defende que Portugal deu um grande passo em termos da equidade entre homens e mulheres na ciência, no entanto considera que as disparidades só serão totalmente combatidas com avaliações às cegas dos projetos. “Seria muito importante ser avaliado cegamente, não é regra geral, mas há cada vez mais tentativas de implementar sistemas desse género a muitos níveis. É a única maneira de se fazer um julgamento idóneo, não só a nível da candidatura de quem está a ser avaliado como de quem são os mentores. Recentemente, houve uma polémica no Twitter em torno de um artigo que mostrava que pessoas que tinham tido mentores mulheres eram prejudicadas.”
No futuro, espera estar num ambiente em que lidere uma equipa, seja na indústria ou na academia. Emigrar depende das oportunidades, os países mais atrativos são a Alemanha ou a França. Salienta: “Estou na fase de escolher: ter um laboratório ou ir para uma empresa, mas a investigação a nível da indústria ainda é muito insuficiente.