Diário de Notícias

Sebastião Bugalho

Obituário do Fiel Jardineiro

- Colunista

Amorte de George Shultz, no sábado passado, aos 100 anos de idade, é marcante pela sua memória e simbolismo. Shultz, uma relíquia do establishm­ent norte-americano, graduou-se no MIT, foi fuzileiro na Segunda Guerra, académico, gestor, secretário do Trabalho, do Tesouro, do Orçamento e, mais celebremen­te, de Estado. Era, até esta semana, o ex-governante com mais idade entre os seus contemporâ­neos. Num jantar na Casa Branca, chegou a dançar com Ginger Rogers. Da vida de estudante em Princeton conservava a tatuagem de um tigre, a mascote da universida­de, que mais tarde proporcion­aria momentos de humor entre pares e repórteres.

Como republican­o, serviu três presidente­s: Dwight D. Eisenhower, Richard Nixon e Ronald Reagan. E foi nos seus seis anos ao leme da diplomacia americana, na administra­ção Reagan, que os Estados Unidos e a União Soviética se voltaram a sentar à mesma mesa. O fim relativame­nte tranquilo da Guerra Fria é, em parte, obra sua. A aproximaçã­o a Mikhail Gorbachev, na década de 1980, possibilit­ou a assinatura de um acordo de limitação de armamento nuclear de alcance intermédio, o INF, de tal forma marcante que duraria até à presidênci­a Trump. Assinado em 1987, veria o Muro cair em 1989 e resistiria até 2019. “Um erro gigantesco”, atirou, na altura, em direção a Donald Trump, a quem nunca deu apoio.

“Múltiplos presidente­s, de ambos os partidos políticos, procuraram o seu conselho. Lamento que, como presidente, já não poderei beneficiar da sua sabedoria como os meus antecessor­es”, é o que se pode ler na nota de pesar lançada pelo recém-eleito Joe Biden, em reação à morte de Shultz. O hoje presidente conheceu-o bem, tendo trabalhado com ele quando encabeçava a comissão dos Negócios Estrangeir­os, no Senado.

Entre os seus colaborado­res mais próximos no Departamen­to de Estado e no Instituto Hoover é recordado como um defensor acérrimo do multilater­alismo. As alianças, para Shultz, eram como um jardim: requeriam cuidado constante, rega e recorte ocasional para o devido florescime­nto. Em dezembro passado, na celebração do seu centenário, reuniram-se para lhe dar os parabéns numa sessão de Zoom.

Colega de homens da linha dura da política externa como Henry Kissinger, de quem ficou amigo, era olhado como um moderado, com um contrapeso numa balança em que qualquer desequilíb­rio seria devastador. Se a doutrina Reagan se baseava na premissa de “paz pela força”, Shultz era o encarregad­o da primeira. Na Guerra Fria, havia um jardineiro da paz. E era ele. “Se tivesse de escolher um americano em quem confiar o destino da nação numa crise, seria George Shultz”, escreveu Kissinger, nas suas memórias.

Em quatro décadas de serviço público, passou notavelmen­te intacto pelos escândalos que afetaram o Partido Republican­o, como Watergate, na presidênci­a Nixon, ou a troca de reféns por armas para o Irão, na presidênci­a Reagan.

Quando Nixon, no poder, o pressionou a utilizar o fisco para atingir adversário­s, recusou terminante­mente. Quando Ronald Reagan submeteu centenas de funcionári­os governamen­tais ao teste do polígrafo, Shultz tornaria a distinguir-se pela recusa. “O minuto em que não sentir a confiança da presidênci­a é o minuto em que saio da presidênci­a”, assegurou à imprensa. Em privado, não seria menos direto, deixando claro a Reagan: “Sr. Presidente, só me poligrafar­á uma vez. Depois, terá de arranjar outro secretário de Estado.” Reagan recuaria e, mais tarde, viria a condecorá-lo com a medalha da Liberdade.

Esta dimensão insurgente seria algo que manteria ao longo da vida, não hesitando em contrariar posições instituída­s na sua área política. Criticou o embargo económico a Cuba contra a elite do seu partido e atacou a ortodoxia do combate às drogas quando esta era uma bandeira do seu presidente. Em 2015, já com 95 anos, publicou um artigo de página inteira em defesa de uma abordagem realista às alterações climáticas, algo ainda hoje longe de ser consensual entre republican­os.

Numa era de mudança nos equilíbrio­s da geoestraté­gia, com a relação atlântica murcha perante os revisionis­mos de Moscovo e Pequim, os 100 anos de vida de George Shultz deixam várias lições. Saibamos ouvi-las.

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