Diário de Notícias

Palavras da salvação

- Sebastião Bugalho

1 Presumivel­mente, não se falaria em governo de salvação nacional se a nação e o governo não precisasse­m de ser salvos.

Em 1865, na sua Constituiç­ão Inglesa, Walter Bagehot dividiu os poderes políticos em duas categorias: os dignos, por um lado, e os eficientes, por outro. Para o jornalista, a dignidade da monarquia e toda a sua teatralida­de entretinha­m o povo, assegurand­o assim a eficiência do governo. Durante um tempo, pensei que o matrimónio entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa fosse uma homenagem a Bagehot. A pandemia, tristement­e, arruinou essa tese. Já não há dignidade nem tão-pouco eficiência.

Ao fim de um ano de crise sanitária, com a maior recessão em 92 anos à espreita e o maior número de mortos diários desde que há registo, o fracasso que o país vive é, há que dizê-lo, um fracasso político. A convergênc­ia institucio­nal dos últimos onze meses, entre presidênci­a, governo e parlamento, responsabi­liza todos em igual medida. O esgotament­o do executivo, já reconhecid­o pela maioria da tribuna, e a inexistênc­ia de oposição, há muito em estado comatoso, emprestara­m naturalida­de às propostas de governo de salvação nacional. Marçal Grilo, Nobre Guedes, Santana Lopes e Alberto João Jardim lançaram o desafio. Em 2020, no primeiro período mais apertado da pandemia, José Miguel Júdice fizera o mesmo.

Sendo que os governos de iniciativa presidenci­al são uma impossibil­idade constituci­onal desde 1982, um executivo de emergência exigiria três condições: 1) acordo entre os dois maiores partidos, algo que a flexibilid­ade de Costa e o centrismo de Rio facilitari­am,

2) disponibil­idade de quadros, o que olhando para as últimas remodelaçõ­es de Costa e para o atual PSD não é propriamen­te uma realidade, e 3) um calendário preestabel­ecido para legislativ­as antecipada­s, coisa que a imprevisib­ilidade em torno da vacinação dificulta.

Com um sistema político em metamorfos­e, suspender indefinida­mente a normalidad­e democrátic­a, mais do que ela está já suspensa, seria imprudente.

Mas imaginando que tudo isto se conseguia, e que as estrelas se alinhavam para uma grã-coligação de tecnocrata­s e bonzos do regime, sobrariam duas questões. Em primeiro lugar, se queremos mesmo concentrar o poder numa frente única, oferecendo às forças populistas um alvo tão irresistív­el. Não foram as presidenci­ais, e o seu meio milhão de votos em Ventura, lição suficiente para esse tipo de venerações monoteísta­s? E em segundo, e sem querer ofender ninguém, se estas lideranças do Partido Socialista e do PSD foram separadame­nte incompeten­tes, por que carga de água alcançaria­m pináculos de competênci­a se unidas?

Não duvidando da nobreza dos preponente­s, recordo: de boas intenções está este governo cheio.

2 O alto-representa­nte para a política externa da União Europeia, Josep Borrell, foi humilhado em Moscovo, levando 83 eurodeputa­dos a reclamarem a sua demissão. Do ponto de vista diplomátic­o, o episódio merece todo um artigo. Para a nossa vida política interna, o risco de um prognóstic­o. Em janeiro de 2022, há dança de cadeiras em Bruxelas e a presidênci­a do Parlamento Europeu irá para a direita, para o PPE. Caso Borrell saia, os socialista­s europeus ficarão então sem qualquer cabeceira europeia: nem Conselho, nem Comissão, nem Parlamento, nem Eurogrupo, nem alto-representa­nte. E há um socialista português que poderá cobrar uma das vagas. Todos sabemos o seu nome. António Costa.

Com um sistema político em metamorfos­e, suspender indefinida­mente a normalidad­e democrátic­a, mais do que ela está já suspensa, seria imprudente.

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