Palavras da salvação
1 Presumivelmente, não se falaria em governo de salvação nacional se a nação e o governo não precisassem de ser salvos.
Em 1865, na sua Constituição Inglesa, Walter Bagehot dividiu os poderes políticos em duas categorias: os dignos, por um lado, e os eficientes, por outro. Para o jornalista, a dignidade da monarquia e toda a sua teatralidade entretinham o povo, assegurando assim a eficiência do governo. Durante um tempo, pensei que o matrimónio entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa fosse uma homenagem a Bagehot. A pandemia, tristemente, arruinou essa tese. Já não há dignidade nem tão-pouco eficiência.
Ao fim de um ano de crise sanitária, com a maior recessão em 92 anos à espreita e o maior número de mortos diários desde que há registo, o fracasso que o país vive é, há que dizê-lo, um fracasso político. A convergência institucional dos últimos onze meses, entre presidência, governo e parlamento, responsabiliza todos em igual medida. O esgotamento do executivo, já reconhecido pela maioria da tribuna, e a inexistência de oposição, há muito em estado comatoso, emprestaram naturalidade às propostas de governo de salvação nacional. Marçal Grilo, Nobre Guedes, Santana Lopes e Alberto João Jardim lançaram o desafio. Em 2020, no primeiro período mais apertado da pandemia, José Miguel Júdice fizera o mesmo.
Sendo que os governos de iniciativa presidencial são uma impossibilidade constitucional desde 1982, um executivo de emergência exigiria três condições: 1) acordo entre os dois maiores partidos, algo que a flexibilidade de Costa e o centrismo de Rio facilitariam,
2) disponibilidade de quadros, o que olhando para as últimas remodelações de Costa e para o atual PSD não é propriamente uma realidade, e 3) um calendário preestabelecido para legislativas antecipadas, coisa que a imprevisibilidade em torno da vacinação dificulta.
Com um sistema político em metamorfose, suspender indefinidamente a normalidade democrática, mais do que ela está já suspensa, seria imprudente.
Mas imaginando que tudo isto se conseguia, e que as estrelas se alinhavam para uma grã-coligação de tecnocratas e bonzos do regime, sobrariam duas questões. Em primeiro lugar, se queremos mesmo concentrar o poder numa frente única, oferecendo às forças populistas um alvo tão irresistível. Não foram as presidenciais, e o seu meio milhão de votos em Ventura, lição suficiente para esse tipo de venerações monoteístas? E em segundo, e sem querer ofender ninguém, se estas lideranças do Partido Socialista e do PSD foram separadamente incompetentes, por que carga de água alcançariam pináculos de competência se unidas?
Não duvidando da nobreza dos preponentes, recordo: de boas intenções está este governo cheio.
2 O alto-representante para a política externa da União Europeia, Josep Borrell, foi humilhado em Moscovo, levando 83 eurodeputados a reclamarem a sua demissão. Do ponto de vista diplomático, o episódio merece todo um artigo. Para a nossa vida política interna, o risco de um prognóstico. Em janeiro de 2022, há dança de cadeiras em Bruxelas e a presidência do Parlamento Europeu irá para a direita, para o PPE. Caso Borrell saia, os socialistas europeus ficarão então sem qualquer cabeceira europeia: nem Conselho, nem Comissão, nem Parlamento, nem Eurogrupo, nem alto-representante. E há um socialista português que poderá cobrar uma das vagas. Todos sabemos o seu nome. António Costa.
Com um sistema político em metamorfose, suspender indefinidamente a normalidade democrática, mais do que ela está já suspensa, seria imprudente.