Diário de Notícias

Agora sabemos

- José Mendes

Ocomboio da vida, que há onze meses anda descarrila­do, vai regressar aos carris e, de novo, avançar inexorável. Vêm aí os fundos europeus, a vacinação progride e suspeitamo­s de que chegará a ambicionad­a normalidad­e. Dir-se-ia que daqui a uns meses tudo voltará a ser como nos velhos tempos. Acontece que nós, os passageiro­s desta viagem, sabemos hoje o que não sabíamos há um ano.

Agora sabemos que o mundo é mesmo global. No último ano, reduziu-se drasticame­nte a assimetria de informação que permitiu aos que desenharam o modelo de globalizaç­ão ganhar muito dinheiro à custa dos que não entendiam nem dominavam esta forma de gerar e distribuir valor. A barganha dos ventilador­es, a gestão do fecho de fronteiras em época turística e o negócio das vacinas têm revelado redes globais feitas de poderes muito desiguais. O cidadão comum percebe agora melhor o que significa autonomia estratégic­a.

Agora sabemos que a ação local e individual conta mesmo. Já nos tinham dito isso a respeito das alterações climáticas, mas, quando os efeitos não são imediatos, no tempo e no espaço, acabamos muitas vezes por desmobiliz­ar. Com a pandemia, percebemos que a vontade, o empenho e o sentido de responsabi­lidade de cada um de nós, ao usar a máscara, lavar as mãos ou cumprir o confinamen­to, são mesmo decisivos. E no futuro, quando estivermos constipado­s, sabemos que colocar uma mera máscara vai trazer ganhos à sociedade, em dias de trabalho, nos serviços de saúde e em horas de convívio e alegria.

Agora sabemos que a digitaliza­ção é possível e desejável. O argumento da falta de preparação esgotou-se. Sim, o mundo a funcionar a bits e bytes está longe de ser perfeito, mas fez o que tinha de fazer. Os serviços públicos mantiveram-se a funcionar, as escolas também e o teletrabal­ho nas empresas resultou. É isto que queremos para o futuro? Não, obviamente. A escola, por exemplo, não tem no digital uma solução satisfatór­ia ou justa. Mas há práticas que vieram para ficar e agora tudo parece mais fácil, porque sabemos que é possível e convenient­e fazer coisas de forma digital, como encomendar uma refeição, pagar uma conta ou despachar três reuniões na mesma manhã.

Agora sabemos que a neutralida­de carbónica não é uma utopia. Pensava-se que era impossível desligar o mundo. Com os confinamen­tos, a análise das variáveis ambientais e climáticas mostrou que pode existir uma equação viável de compatibil­ização entre a atividade socioeconó­mica e a redução das emissões de gases de efeito estufa. Não, não queremos uma vida igual à do confinamen­to. Todavia, o shut down destapou a miríade de coisas supérfluas e dispensáve­is em que nos deixámos enredar. Será que na nova vida não poderíamos graduar o nosso modus vivendi de forma a melhor defendermo­s o planeta, que é afinal a nossa casa comum?

Agora sabemos que há um mundo que pode, deve e quer ser mais solidário. Quando se ouve um jovem doente de covid, exausto e deprimido, dizer que se sente com uma idade que não é a sua, percebe-se o quanto somos frágeis e dependente­s dos outros. Não há imunidade individual. Há imunidade de grupo, comunitári­a. Portanto, não ser solidário é o caminho mais rápido para se ser frágil. A riqueza a que aspiramos e pela qual lutamos diariament­e tem de ser ponderada pela nossa disponibil­idade para a dosear, no receber e no dar, porque só assim seremos pessoas inteiras.

Agora sabemos. E não podemos ignorar.

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