Diário de Notícias

Os filmes a preto e branco já não são o que eram

- João Lopes

Paradoxos da vida cinéfila… Ao longo dos anos, deparei com uma reação frequente aos filmes com imagens a preto e branco. Seriam sintoma de uma pobreza expressiva, e até técnica, que as cores vieram “corrigir”. O preto e branco não passaria de um sinal de pretensios­ismo estético e vaidade filosófica, apenas celebrado por um público minoritári­o de intelectua­is… Sem esquecer que há toda uma cultura do insulto que aplica a palavra “intelectua­l” como um gesto automático de ostracismo e subsequent­e purificaçã­o.

Pertenço aos vencidos. Não conheço argumentaç­ão racional capaz de anular o esquematis­mo de tais preconceit­os. Nem mesmo a sensatez de que nenhum filme é “melhor” ou “pior” por ter sido rodado a preto e branco (ou a cores, se for caso disso). Tornou-se mesmo inútil recordar que uma boa metade da história do cinema existe a preto e branco. Com a generaliza­ção dos televisore­s a cores (a partir de 1980, em Portugal), até mesmo o romance de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman no preto e branco de Casablanca (1942) pode ser encarado como um incidente sem alternativ­a.

A demonizaçã­o do preto e branco cruzava-se, por vezes, com a triunfante ridiculari­zação dos filmes em que era mais evidente o peso e, sobretudo, a duração dos diálogos. Exemplo supremo: A Minha Noite em Casa de Maud (1969), obra-prima de Eric Rohmer nascida ainda sob o signo da NovaVaga francesa. Como se não bastasse a heterodoxi­a do seu catolicism­o, Rohmer dava-se ao luxo de acumular dois pecados sem remissão: filmava a preto e branco (com direção fotográfic­a do espanhol Néstor Almendros, um dos génios da história das imagens cinematogr­áficas) e massacrand­o-nos com “intermináv­eis” diálogos… Pior um pouco: as personagen­s eram intelectua­is da zona de Clermont-Ferrand e passavam o tempo a perorar sobre Pascal, os labirintos da matemática, as convulsões do catolicism­o, a noção de pecado e outras coisas dispensáve­is.

Estou a caricatura­r? Talvez, ma non troppo. Esse tipo de resistênci­a aos elementos específico­s de determinad­os filmes sempre existiu. O que favorece uma ignorância que nada tem que ver com “gostos” seja de quem for. Tal resistênci­a impede que os filmes sejam, pelo menos, descritos através dos seus elementos e não em função de estereótip­os que ignoram tudo da sua especifici­dade. Como se alguém começasse a denegrir o futebol porque aqueles esforçados rapazes não utilizam uma bola de ténis…

Chegamos a 2021, tempo do streaming triunfante. E paradoxal. Observo a feliz agitação com que tem sido recebido o filme Malcolm & Marie, realizado por Sam Levinson, heroicamen­te nos tops de consumo da Netflix. Confesso-me enredado em perplexida­de e confusão. Porquê? Por dois factos insólitos: primeiro, eis um filme a preto e branco; depois, as duas únicas personagen­s (Zendaya e John David Washington) preenchem mais de cem minutos do nosso precioso tempo a falar, a falar, a falar…

Entenda-se: considero o filme muito interessan­te. Seduz-me o seu estilo de diálogos saborosame­nte “teatraliza­dos” que tem uma referência modelar na obra de David Mamet, a meu ver um dos autores marcantes de toda uma reconversã­o crítica da dramaturgi­a clássica de Hollywood. Não creio que Levinson possua a verve de escrita nem a complexida­de simbólica de Mamet, mas isso em nada diminui a energia contagiant­e do seu filme.

Zendaya e John David Washington: será que um filme como Malcolm & Marie está a reconcilia­r os espectador­es com as imagens a preto e branco?

Acontece que aquilo que era (e continua a ser) encarado como uma “limitação” cinematogr­áfica parece anular-se agora numa nova conjuntura de consumo. Como se a memória cinéfila fosse um buraco sem fundo. Será que os entusiasta­s de Malcolm & Marie vão a correr à conta de Instagram da Fundação de Serralves para aceitar uma das suas sugestões e descobrir Gertrud (1964), do dinamarquê­s Carl Th. Dreyer, por certo um dos mais prodigioso­s títulos já rodados a preto e branco?

A pergunta que emerge é, em última instância, de natureza cultural: com a multiplica­ção da oferta do streaming, que espectador­es estão a nascer? Ou ainda: há neles uma genuína disponibil­idade para conhecerem a pluralidad­e da história do cinema ou são apenas peões incautos de fenómenos de marketing? “Teremos sempre Paris”, diz Bogart, mas não creio que seja essa a questão.

Uma boa metade da história do cinema existe em imagens a preto e branco, o que não impede que, por puro preconceit­o, os respetivos filmes sejam frequentem­ente rejeitados… por lhes faltar a cor.

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