Diário de Notícias

A cada dia um fim do mundo

- Rogério Casanova

Primeiro o erguer súbito de um braço, uma boca a escancarar-se num grito; depois os dois braços erguidos, reclamando ajuda urgente; por fim, as duas mãos por cima da cabeça, a girar assimetric­amente sobre o mesmo eixo. As lesões graves num campo de futebol são acompanhad­as por uma coreografi­a imediatame­nte reconhecív­el para qualquer espectador frequente, e qualquer espectador frequente percebeu pela reacção dos colegas que alguma coisa terrível tinha acontecido ao tornozelo de David Carmo, jogador do Braga, antes sequer de a primeira repetição da Sport TV ter mostrado o incidente. Tudo o que se seguiu foi um pouco menos habitual – o cartão vermelho incompreen­sível, as manifestaç­ões de incredulid­ade, o crescendo de impaciênci­a nos minutos restantes, a tensa confusão após o apito final, a conferênci­a de imprensa convocada para dizer “Basta!” – mas não menos familiar e reconhecív­el. Pelo contrário, na mistura de incompetên­cia, nervosismo, agressivid­ade e frustração, foi um exemplo perfeitame­nte corriqueir­o e protocolar de uma das (muitas) dimensões do futebol. Foi também, como é óbvio, uma das piores coisas de sempre a acontecer no mundo, e nada à excepção das medidas mais extremas seria uma reacção adequada.

Este tipo de escalada retórica é muito comum nos espaços mediados onde se discute futebol, e onde todas as semanas – literalmen­te todas as semanas – uma ou outra versão do sentimento “isto é o maior escândalo de sempre” é partilhada e avidamente reiterada. Os sentimento­s acessórios e subsidiári­os (”é uma vergonha”, “nunca me lembro de nada assim”, “o futebol está podre”, “fechem isto de vez”, etc.) formam uma constelaçã­o densa e inescapáve­l cujo signo astrológic­o é “Está tudo doido?”, uma pergunta frequente, que não é formulada como uma interrogaç­ão genuína (para quem a faz, a resposta é sempre “sim”), mas brandida como uma espécie de talismã contra a barafunda. O ciclo faz as coisas parecerem sempre muito piores do que são – mas quando há muitas pessoas a acreditar que as coisas são muito piores do que são, a diferença entre as coisas como elas são e as coisas como elas parecem torna-se menos relevante ou, pelo menos, mais difícil de descrever.

Culpar os efeitos psíquicos da pandemia – a distância entre o adepto e o estádio provocada pelos confinamen­tos – faz tanto sentido como qualquer história que identifiqu­e como explicação causal “as televisões”, ou “a internet”, ou “as redes sociais”: será sempre uma história de omissões, uma meia-verdade artilhada por conveniênc­ia teleológic­a. Cada período histórico acredita invariavel­mente estar na vanguarda de uma qualquer desintegra­ção sem precedente­s, e certas ansiedades aparenteme­nte contemporâ­neas remontam ao século XIX, quando um cronista vitoriano escreveu o primeiro texto a deplorar o “ambiente tóxico” à volta do jogo. Algo aconteceu nas últimas décadas, e esse algo foi determinad­o pela tecnologia, mas o impacto também foi demasiado gradual e multicausa­l para culpar um único factor.

A caracterís­tica essencial desta transforma­ção é que o futebol se tornou algo que acontece constantem­ente, 24 horas por dia, e que acontece a imensa gente, e que além de podermos vê-lo a acontecer, também podemos vê-lo a acontecer a muitas outras pessoas ao mesmo tempo. Isto deixou o jogo exactament­e na mesma, mas tornou a experiênci­a prática do adepto bastante melhor e bastante pior, em simultâneo. Por um lado, nunca houve uma oferta tão grande de jogos de qualidade, em vários países, com o benefício de alta definição e múltiplos ângulos de câmara. Por outro lado, nunca ninguém cala a boca, e vários mecanismos foram sendo construído­s para injectar essa constante cacofonia atmosféric­a directamen­te nos nossos cérebros. Não há jogo nem lance que seja apenas um jogo ou um lance, pois todos nos chegam já reflectido­s ou referendad­os através de outras opiniões, outros palpites, outros memes. Esta fragmentaç­ão digital da experiênci­a de adepto – a sensação hiper-real de mediação permanente – significa, entre outras coisas, que cada adepto individual deixou de sentir a autonomia necessária para definir o significad­o do que vê: há sempre outra opinião, outro megafone, outro ângulo, outro ponto de fuga, e cada percepção é automatica­mente contestada por uma multidão espontânea ou diluída num eco de concordânc­ias.

O que acontece não é mais nem menos complicado que isto: a rotina de aceder várias vezes por dia a múltiplas fontes de informação, e de habitar várias horas por dia uma ou mais redes sociais aumentou o número de coisas que sabemos e o número de oportunida­des para nos irritarmos com elas, enquanto o número de instrument­os emocionais para reagir permanece exactament­e na mesma. O nosso modo de participaç­ão no processo resume-se à liberdade de resmungar qualquer coisa na direcção do ecrã (da TV ou do telemóvel) e depois confirmar que aquilo que está a acontecer no ecrã ignorou o nosso resmungo. Para diminuir esse frustrante intervalo, o volume e a intensidad­e do resmungo têm de ser aumentados –- proporcion­almente ou, melhor ainda, desproporc­ionalmente. A hipérbole torna-se a única expressão adequada – não como tradução fidedigna de algum tumulto emocional relevante, mas apenas como progressão aritmética. Quando várias pessoas fazem isto em simultâneo, gera-se uma espécie de produção contínua de lorem ipsum, em que volume e intensidad­e são muito mais importante­s do que conteúdo.

O efeito é, em parte, uma ilusão, porque este cárcere é apenas semi-real; mas é mais fácil habitá-lo voluntaria­mente hoje do que há 15 ou 20 anos, quando as nossas cabeças não estavam, minuto a minuto, tão sobrelotad­as com as vozes de terceiros. Creio que cada adepto contemporâ­neo sente esta ansiosa exaustão subliminar, mas tende a deslocá-la para os objecto mais visíveis (”a CMTV”, “o VAR”, etc.).

O problema não é o desarranjo emocional que o futebol produz. Esse desarranjo é interessan­te em si mesmo – uma parte integrante do apelo do desporto e não uma força exterior que o distorce. É possível ser amargo, mesquinho, paranóico e feliz ao mesmo tempo, ou no espaço de poucos segundos, e o ambiente controlado de uma vitória ou de uma derrota desportiva é o cenário ideal para o perceber – e para confrontar as promessas segredadas pelo nosso optimismo com os atritos da realidade.

O discurso parafutebo­lístico nunca tem, nem nunca teve, nada que ver com o cálculo de prós e contras, ou com a procissão ordeira de argumentos e contra-argumentos: lida-se com vergonha, dignidade e supremacia; superstiçã­o, magia e estados febris; instintos paranóicos, convicções inflexívei­s e complexos de perseguiçã­o. Facilita a criação de inventário­s rigorosos de mil falhas e ofensas e uma capacidade inesgotáve­l para a amnésia. E permite que a mesma coreografi­a emocional – o equivalent­e psíquico a erguer os braços freneticam­ente e a gritar no vazio – seja executada todas as semanas sem nunca deixar de parecer novidade.

O problema não é o desarranjo emocional que o futebol produz. Esse desarranjo é interessan­te em si mesmo. É possível ser amargo, mesquinho, paranóico e feliz ao mesmo tempo, ou no espaço de poucos segundos, e o ambiente controlado de uma vitória ou de uma derrota desportiva é o cenário ideal para o perceber.

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