A cada dia um fim do mundo
Primeiro o erguer súbito de um braço, uma boca a escancarar-se num grito; depois os dois braços erguidos, reclamando ajuda urgente; por fim, as duas mãos por cima da cabeça, a girar assimetricamente sobre o mesmo eixo. As lesões graves num campo de futebol são acompanhadas por uma coreografia imediatamente reconhecível para qualquer espectador frequente, e qualquer espectador frequente percebeu pela reacção dos colegas que alguma coisa terrível tinha acontecido ao tornozelo de David Carmo, jogador do Braga, antes sequer de a primeira repetição da Sport TV ter mostrado o incidente. Tudo o que se seguiu foi um pouco menos habitual – o cartão vermelho incompreensível, as manifestações de incredulidade, o crescendo de impaciência nos minutos restantes, a tensa confusão após o apito final, a conferência de imprensa convocada para dizer “Basta!” – mas não menos familiar e reconhecível. Pelo contrário, na mistura de incompetência, nervosismo, agressividade e frustração, foi um exemplo perfeitamente corriqueiro e protocolar de uma das (muitas) dimensões do futebol. Foi também, como é óbvio, uma das piores coisas de sempre a acontecer no mundo, e nada à excepção das medidas mais extremas seria uma reacção adequada.
Este tipo de escalada retórica é muito comum nos espaços mediados onde se discute futebol, e onde todas as semanas – literalmente todas as semanas – uma ou outra versão do sentimento “isto é o maior escândalo de sempre” é partilhada e avidamente reiterada. Os sentimentos acessórios e subsidiários (”é uma vergonha”, “nunca me lembro de nada assim”, “o futebol está podre”, “fechem isto de vez”, etc.) formam uma constelação densa e inescapável cujo signo astrológico é “Está tudo doido?”, uma pergunta frequente, que não é formulada como uma interrogação genuína (para quem a faz, a resposta é sempre “sim”), mas brandida como uma espécie de talismã contra a barafunda. O ciclo faz as coisas parecerem sempre muito piores do que são – mas quando há muitas pessoas a acreditar que as coisas são muito piores do que são, a diferença entre as coisas como elas são e as coisas como elas parecem torna-se menos relevante ou, pelo menos, mais difícil de descrever.
Culpar os efeitos psíquicos da pandemia – a distância entre o adepto e o estádio provocada pelos confinamentos – faz tanto sentido como qualquer história que identifique como explicação causal “as televisões”, ou “a internet”, ou “as redes sociais”: será sempre uma história de omissões, uma meia-verdade artilhada por conveniência teleológica. Cada período histórico acredita invariavelmente estar na vanguarda de uma qualquer desintegração sem precedentes, e certas ansiedades aparentemente contemporâneas remontam ao século XIX, quando um cronista vitoriano escreveu o primeiro texto a deplorar o “ambiente tóxico” à volta do jogo. Algo aconteceu nas últimas décadas, e esse algo foi determinado pela tecnologia, mas o impacto também foi demasiado gradual e multicausal para culpar um único factor.
A característica essencial desta transformação é que o futebol se tornou algo que acontece constantemente, 24 horas por dia, e que acontece a imensa gente, e que além de podermos vê-lo a acontecer, também podemos vê-lo a acontecer a muitas outras pessoas ao mesmo tempo. Isto deixou o jogo exactamente na mesma, mas tornou a experiência prática do adepto bastante melhor e bastante pior, em simultâneo. Por um lado, nunca houve uma oferta tão grande de jogos de qualidade, em vários países, com o benefício de alta definição e múltiplos ângulos de câmara. Por outro lado, nunca ninguém cala a boca, e vários mecanismos foram sendo construídos para injectar essa constante cacofonia atmosférica directamente nos nossos cérebros. Não há jogo nem lance que seja apenas um jogo ou um lance, pois todos nos chegam já reflectidos ou referendados através de outras opiniões, outros palpites, outros memes. Esta fragmentação digital da experiência de adepto – a sensação hiper-real de mediação permanente – significa, entre outras coisas, que cada adepto individual deixou de sentir a autonomia necessária para definir o significado do que vê: há sempre outra opinião, outro megafone, outro ângulo, outro ponto de fuga, e cada percepção é automaticamente contestada por uma multidão espontânea ou diluída num eco de concordâncias.
O que acontece não é mais nem menos complicado que isto: a rotina de aceder várias vezes por dia a múltiplas fontes de informação, e de habitar várias horas por dia uma ou mais redes sociais aumentou o número de coisas que sabemos e o número de oportunidades para nos irritarmos com elas, enquanto o número de instrumentos emocionais para reagir permanece exactamente na mesma. O nosso modo de participação no processo resume-se à liberdade de resmungar qualquer coisa na direcção do ecrã (da TV ou do telemóvel) e depois confirmar que aquilo que está a acontecer no ecrã ignorou o nosso resmungo. Para diminuir esse frustrante intervalo, o volume e a intensidade do resmungo têm de ser aumentados –- proporcionalmente ou, melhor ainda, desproporcionalmente. A hipérbole torna-se a única expressão adequada – não como tradução fidedigna de algum tumulto emocional relevante, mas apenas como progressão aritmética. Quando várias pessoas fazem isto em simultâneo, gera-se uma espécie de produção contínua de lorem ipsum, em que volume e intensidade são muito mais importantes do que conteúdo.
O efeito é, em parte, uma ilusão, porque este cárcere é apenas semi-real; mas é mais fácil habitá-lo voluntariamente hoje do que há 15 ou 20 anos, quando as nossas cabeças não estavam, minuto a minuto, tão sobrelotadas com as vozes de terceiros. Creio que cada adepto contemporâneo sente esta ansiosa exaustão subliminar, mas tende a deslocá-la para os objecto mais visíveis (”a CMTV”, “o VAR”, etc.).
O problema não é o desarranjo emocional que o futebol produz. Esse desarranjo é interessante em si mesmo – uma parte integrante do apelo do desporto e não uma força exterior que o distorce. É possível ser amargo, mesquinho, paranóico e feliz ao mesmo tempo, ou no espaço de poucos segundos, e o ambiente controlado de uma vitória ou de uma derrota desportiva é o cenário ideal para o perceber – e para confrontar as promessas segredadas pelo nosso optimismo com os atritos da realidade.
O discurso parafutebolístico nunca tem, nem nunca teve, nada que ver com o cálculo de prós e contras, ou com a procissão ordeira de argumentos e contra-argumentos: lida-se com vergonha, dignidade e supremacia; superstição, magia e estados febris; instintos paranóicos, convicções inflexíveis e complexos de perseguição. Facilita a criação de inventários rigorosos de mil falhas e ofensas e uma capacidade inesgotável para a amnésia. E permite que a mesma coreografia emocional – o equivalente psíquico a erguer os braços freneticamente e a gritar no vazio – seja executada todas as semanas sem nunca deixar de parecer novidade.
O problema não é o desarranjo emocional que o futebol produz. Esse desarranjo é interessante em si mesmo. É possível ser amargo, mesquinho, paranóico e feliz ao mesmo tempo, ou no espaço de poucos segundos, e o ambiente controlado de uma vitória ou de uma derrota desportiva é o cenário ideal para o perceber.