Mudam-se os tempos, nem sempre se muda o amor
RELACIONAMENTOS “Até ao fim do mundo”, mandou o rei D. Pedro I inscrever nos túmulos do Mosteiro de Alcobaça que o acolheriam a si e à sua Inês de Castro. Dessa longínqua Idade Média à atualidade pode dizer-se que muita coisa mudou nas vivências do amor e do sexo, mas talvez não tanto como se pensa.
Tão requintado como transgressor, o compositor norte-americano Cole Porter (1891-1964) foi autor de algumas das melhores (e mais bem-sucedidas) canções sobre amor e sexo de sempre. Em 1928, ao levar à Broadway a canção Let’s Do It, Porter despertou a sanha esquartejadora dos censores que não tinham dúvidas sobre as intenções do autor ao dizer que “todos o fazem”, “até os peixes no aquário”. Ainda que acrescentasse a patine de romantismo: “Vamos fazê-lo!/Vamo-nos apaixonar”, a sugestão erótica ficava no ar como outrora os lenços perfumados deixados cair por damas em demanda de atenções masculinas.
Bon vivant, Cole Porter sabia do que falava: a motivação erótica é tão universal como o instinto de sobrevivência e galga como um atleta barreiras sociais, geográficas e culturais. Já era assim ao tempo do Cântico dos Cânticos e promete continuar a sê-lo no futuro, quando houver colónias humanas no espaço. Mas em tão
delicada matéria, como distinguir o comportamento inato do culturalmente adquirido? O que há de comum entre sociedades ( como a ocidental) em que prevalece o modelo monogâmico e outras em que a poligamia, ou mesmo a poliandria, são aceites? E, finalmente, o que há de imutável no amor, que leva a personagem de Ingrid Bergman, em Viagem a Itália (1954) a comover-se profundamente em Pompeia, diante da imagem fossilizada de um casal que enfrentou a morte, num derradeiro abraço?
Para a historiadora Ana Maria Rodrigues de Oliveira (autora de várias obras como O Dia-a-Dia em Portugal na Idade Média e Rainhas Medievais de Portugal) “neste período histórico, o amor conjugal envolvia mais uma componente de companheirismo e conselho do que o sentido romântico que hoje lhe atribuímos”. De resto, a vivência do amor e da sexualidade estava então condicionada por interditos e proibições, a que não eram alheios os interesses da política, da economia e da religião: “Se formos ver o que era estabelecido pela Igreja (e não podemos esquecer que as pessoas eram realmente muito religiosas nesta época) havia todo um calendário litúrgico em que os crentes se deviam abster do ato sexual: à sexta-feira não se podia porque era o dia da morte de Cristo, ao sábado porque o Cristo morto estava no sepulcro e ao domingo porque ressuscitara. E depois havia as proibições do Natal, do Advento, da Quaresma, do Pentecostes, antes e depois da comunhão, da própria condição fisiológica da mulher, com os seus períodos ditos de impureza. Havia claramente um tempo para amar e outro para não amar e este era muito longo.”
Mas tão universal como a existência de proibições é o próprio impulso de transgredir: “Sabemos que as pessoas ultrapassavam estes interditos porque há muitas fontes que o revelam, nomeadamente as cantigas de escárnio e maldizer.” A história, aliás, é pródiga em casos que não se resignaram ao modelo vigente. Como nota a historiadora: “O amor de Pedro e Inês é todo ele feito de transgressão. Ainda príncipe herdeiro, D. Pedro não só se insurge contra a vontade do rei, seu pai, como subverte uma lei canónica muito importante na época, já que D. Inês era madrinha da primeira criança nascida do casamento dele com Dona Constança. É bem possível que esta, suspeitando dos amores do marido, tenha recorrido a esse estratagema porque a Igreja sancionava os relacionamentos amorosos entre compadres. Mas foi em vão, como se sabe.”
Mas se o adultério era crime que, nesta altura, recaía tanto sobre homens como sobre mulheres, “a existência de numerosas cartas de perdão passadas pelos reis” demonstram, como nota Ana Maria Rodrigues de Oliveira, que havia alguma tolerância para casos destes. O mesmo não acontecia com a homossexualidade, o tabu maior. “Entre mulheres poderia ser mais tolerada, mas entre homens era o escândalo total já que se considerava uma desonra e um desperdício de semente contrário à natureza. Se o caso era levado a Tribunal, a condenação era a morte pelo fogo, o que se agravou na Idade Moderna, com a Inquisição a ocupar-se dos chamados crimes por sodomia.”
O estigma em torno das relações homoeróticas (que alegadamente não teria existido na Grécia antiga, por exemplo) tem conhecido uma extraordinária longevidade. Isabel Freire, socióloga, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (autora de livros como Amor e Sexo no Tempo de Salazar ou Sexualidades, Media e Revolução dos Cravos) nota que o Estado Novo, neste caso, agravou uma marginalização que já existia: “Lembro-me em particular de encontrar uma notícia de 1910 em que se referia um menino que se atirara para debaixo de um comboio depois de ter sido encontrado em namorico com um rapaz da sua turma. Os transexuais então eram considerados aberrações e vítimas das maiores humilhações. Dramas como estes eram bem mais frequentes do que se possa pensar.” A mudança só chegará verdadeiramente com a Democracia, mas, como nota Isabel Freire, não foi automática: “Com a revolução do 25 de Abril verificaram-se mudanças legais quer na Constituição, quer no Código Civil que são fundamentais para a vida afetiva e sexual mas as mentalidades não mudaram por decreto.” Para a socióloga, nos meses que se seguiram à revolução, “há três momentos fundamentais a considerar: A manifestação feminista do Parque Eduardo VII, o manifesto dos homossexuais, publicado duas semanas após o 25 de Abril, e a declaração de cerca de 500 prostitutas que é lida numa reunião do Movimento Democrático das Mulheres. Mas todos estes movimentos, que reivindicavam uma visão distinta da tradicional, foram silenciados e desvalorizados pela imprensa e sociedade da época. Apesar da retórica da liberdade, havia na sociedade portuguesa uma indisponibilidade geral para se debater esses temas”. E Isabel Freire recorda o momento em que “Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, foi à RTP dizer que a revolução não se fizera para ser reivindicada por homossexuais e prostitutas”. O retrato do país que saíra de quase meio século de ditadura “é-nos dado por um livro de Ana Vicente intitulado Mulheres em Discurso que nos mostra o desconhecimento confrangedor das mulheres portuguesas sobre o corpo, a sexualidade e as vivências do prazer. Na sequência desta caracterização, a revista Crónica Feminina vai publicar semanalmente informação básica sobre estas questões fornecida pela Comissão da Condição Feminina e começam a registar-se alguns progressos, nomeadamente em matéria de saúde reprodutiva”.
Mas a história das relações amorosas e da sexualidade não avança em linha reta. Como salienta Isabel Freire, “não podemos esquecer que, em cada época histórica, coexistem pelo menos cinco gerações, com modos de viver e de pensar diferentes, mas que interagem entre si”. Do mesmo modo, considera que não estamos a ser totalmente justos quando falamos da revolução sexual dos anos 1960-70: “À parte a invenção da pílula, que trouxe às mulheres uma liberdade nova, este debate já acontecia nos anos 10 e 20 do século XX, com os movimentos neomalthusianos a defenderem uma separação de sexualidade e reprodução. Eram, nesta época, discussões muito ligadas aos meios anarquistas que também falavam do direito ao amor livre, fora do casamento. Claro que a reação não se fez esperar, com os opositores destas posições a acusarem-nos de defender o amor estéril.”
O direito de amar em liberdade, como outras conquistas democráticas, não pode, no entanto, ser dado por adquirido. Volátil, porque o vivenciado escreve-se muitas nas entrelinhas da história, a mudança de mentalidades faz-se de avanços, recuos e da prevalência de preconceitos muito antigos. Isabel Freire não tem por isso dúvidas em afirmar que, em matéria de afetos e identidade sexual, “mantemo-nos em revolução.”
Se o adultério era crime que [na Idade Média] recaía tanto sobre homens como sobre mulheres, “a existência de numerosas cartas de perdão passadas pelos reis” demonstra, como nota Ana Maria Rodrigues de Oliveira, que havia alguma tolerância para casos destes. O mesmo não acontecia com a homossexualidade, o tabu maior.