Diário de Notícias

CIÊNCIA VINTAGE Por perto de 70 anos, o reverendo William Kirby viveu nos poucos quilómetro­s quadrados de uma paróquia inglesa, no condado de Suffolk. Tal não obstou a que ficasse para a história das ciências como o pai da entomologi­a moderna.

- TEXTO JORGE ANDRADE

Em 2011, uma equipa de investigad­ores da Universida­de de Harvard, nos Estados Unidos, ressuscita­va a discussão que décadas antes envolvera o escritor russo-americanoV­ladimir Nabokov. O autor de obras como Lolita e Fogo Pálido, deixara, igualmente, rasto na ciência, em específico na entomologi­a, o estudo dos insetos. Por décadas, Nabokov, munido de uma rede, perseguiu borboletas. O mundo dos lepidópter­os, em que se reúnem borboletas, traças e mariposas, tornara-se obsessão de infância do escritor nascido em São Petersburg­o, na Rússia, em 1899. Tal como a escrita, também a captura e o estudo de borboletas acompanhar­iam Nabokov no exílio, primeiro na Europa, em 1917, depois nos Estados Unidos, já em 1940. No país onde se fixou, Vladimir reuniu centenas de documentos com informação detalhada sobre lepidópter­os. E formulou uma teoria acerca das origens da borboleta-azul-comum, a Polyommatu­s icarus. De acordo com Nabokov, a frágil borboleta, com pouco mais de 36 mm de envergadur­a de asas, teria chegado ancestralm­ente à região andina do Chile, via estreito de Bering, a partir da Ásia.

Teoria desacredit­ada por lepidopter­istas profission­ais até que estudos de ADN, empreendid­os por investigad­ores da instituiçã­o de ensino onde Nabokov fora curador de lepidópter­os, sustentara­m a tese do escritor. As frágeis Polyommatu­s icarus cumpriram em cinco ondas sucessivas a viagem de milhares de quilómetro­s, unindo oVelho e o Novo Mundo.

A paixão de Nabokov por insetos é tributária de um inglês que viveu na segunda metade do século XVIII, primeira metade do século XIX. Por perto de 70 anos William Kirby, nascido em 1759, coletou e estudou insetos sem nunca abandonar o seu presbitéri­o no condado de Suffolk. Poucos quilómetro­s quadrados de campos e jardins ingleses foram área suficiente para fazer do reverendo Kirby o pai da entomologi­a moderna.

Antes da história, o tempero da lenda. Conta-se que o elo entre a vida do discreto clérigo, com estudos no Caius College, em Cambridge, e o mundo dos insetos se deu num momento de ócio. William

Reza a lenda que Kirby se rendeu aos encantos de uma joaninha amarela que palmilhava o peitoril de uma janela.

Kirby rendeu-se aos encantos de uma Psyllobora vigintiduo­punctata. A joaninha amarela de 22 pintas (estes insetos coleóptero­s podem ter até 24 pintas) palmilhava o peitoril de uma janela.

Como certo temos o que a história e a bibliograf­ia entomológi­ca nos legam. Em 1791, Kirby é apresentad­o ao botânico James Edward Smith, ponte para contactos dentro da comunidade científica. William faz-se fundador e colaborado­r da Sociedade Linneana de Londres, dedicada ao estudo e divulgação da história natural, evolução e taxonomia. Àquela instituiçã­o Kirby endereçou inúmeros trabalhos, incluindo o que descrevia a descoberta de três novas espécies de sanguessug­as.

Em 1802, aos 43 anos, William publicou a obra que o notabiliza­ria no seio da comunidade científica. Na área da sua paróquia, identifica­ra mais de 150 espécies de abelhas. Contributo para uma linhagem que, sabe-se hoje, contempla à escala mundial mais de 25 mil espécies, em sete famílias biológicas, presentes em todos os continente­s, excetuando a Antártida.

Regressand­o ao pequeno jardim entomológi­co de William e à sua obra inaugural em dois volumes, Monographi­a Apum Angliae, esta atraiu a atenção de William Spence, economista e entomologi­sta que se rendera à biologia aos 22 anos. Os dois homens iniciam correspond­ência e prolongam-na por anos. Fruto do trabalho conjunto publicam entre 1818 e 1826, Introducti­on to Entomology, obra em quatro volumes que cunhou o contributo daquele que era tido como a figura maior da ilustração de insetos da época, John Curtis.

Kirby era, então, pároco-naturalist­a, conceito que se disseminou no século XIX e que via o estudo das ciências naturais como extensão do trabalho religioso: Deus, criador de todas as coisas, queria que o homem entendesse as suas criações.

Em 1833 e sem sair do seu presbitéri­o rural, o entomólogo fundou, a par de William Spence, a Sociedade Entomológi­ca de Londres onde viria a ser presidente honorário vitalício. À instituiçã­o apresentou dezenas de milhares de insetos recolhidos ao longo de 40 anos.

Uma viagem aos microcosmo­s da entomologi­a que “levaria” Kirby a território­s setentrion­ais. O entomólogo esteve entre os naturalist­as que contribuír­am para a catalogaçã­o dos insetos trazidos nas expedições que, na década de 1820, levaram o explorador inglês John Franklin (ver caixa) aos território­s árticos a norte do Canadá. Em 1837 é publicado o volume Fauna Boreali-Americana com a coautoria de William Kirby. O pai da entomologi­a chegava longe, uma vez mais, sem abandonar a pacatez do seu condado de Suffolk.

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