João Araújo “A procura por matemáticos subiu tanto que é difícil segurá-los até acabarem o mestrado”
Sociedade Portuguesa de Matemática está a celebrar 80 anos. João Araújo, presidente da SPM, fala ao DN sobre os desafios de ensinar Matemática à distância e de como a disciplina e os modelos matemáticos se tornaram centrais na gestão da pandemia.
“Quando há tanta incerteza, como é o caso da covid-19, o máximo que se pode fazer é discutir cenários. Não perceber a diferença entre previsão e cenário [na pandemia] gerou ceticismo escusado.”
Para João Araújo, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, o ensino à distância traz de volta muitos desafios que deveriam ter sido enfrentados há muito, pelo menos após a primeira experiência de confinamento, mas que permanecem por solucionar. Diz que os professores de Matemática precisam de ter uma grande capacidade de planeamento e vontade férrea para executar esse plano. Caso contrário, alerta, “o Ensino à Distância [E@D] pode tornar-se uma terrível experiência de solidão”.
O ensino à distância vai manter-se. Quais os principais desafios para um professor de Matemática?
A falta de um modelo pedagógico alinhado com a melhor evidência científica em ensino à distância, e que deveria ter sido fornecido em abril passado; a falta de formação (de qualidade) orientada para usar o modelo, por formadores com anos de experiência e know how (experiência em E@D não é experiência em tecnologia), formação que deveria ter começado há muito e que pela sua importância a SPM tem estado a oferecer a centenas de professores (e a fornecer o modelo...); a falta de formação e experiência na preparação de materiais para E@D, matéria onde importa mais o cérebro do professor do que a mão do tecnólogo; a falta de enquadramento legal para prevenir o assédio a que os professores são sujeitos no E@D (utilização abusiva de gravações piratas de aulas e materiais); a falta de meios para a lecionação, que tem sido essencialmente síncrona no ensino remoto de emergência, o que em si é menos eficaz e é impossível numa casa sem meios computacionais ou de rede. Há um excesso da destrutiva convicção que o E@D é para adultos, quando ele foi para as crianças décadas antes de ser universitário, e sobra a má experiência passada que convenceu erradamente a muitos que já sabem o que é E@D e que ele não funciona. Sendo a Matemática tão prática, baseada em exercícios constantes, como superar a falta de contacto humano para conseguir manter essa componente prática?
O E@D bem feito é o modelo por excelência do ensino em proximidade. Além disso, a Matemática é especialmente talhada para o ensino à distância. Sofro com professores no país inteiro mandados para o terreno sem o equipamento necessário (o modelo pedagógico, a formação, etc.), e o que posso dizer para os ajudar é forçosamente limitado. Sugiro que o professor, tendo de lecionar a matéria X (por exemplo, o Teorema de Pitágoras), pegue nos correspondentes descritores das metas e faça uma ficha (ou mais) por cada descritor, explicando-o numa caixa inicial muito curta (menos de 5 cm de lado). Depois cria a sequência: exercício resolvido de um tipo (por exemplo, dados os catetos, determine a hipotenusa) seguido de exercícios propostos exatamente, repito, exatamente do mesmo tipo (dados os catetos, determine a hipotenusa). A seguir, um exercício resolvido de outro tipo (dados um cateto e a hipotenusa, determine o outro cateto), e exercícios propostos exatamente do mesmo tipo. Continue assim para exercícios cada vez mais difíceis, mas sempre exercício resolvidos/propostos do mesmo tipo. O professor precisa de ter uma vontade férrea para seguir este esquema, pois a tentação de meter dois assuntos na caixa inicial ou exercícios mais exigentes sem preparação vai ser avassaladora.
Requer uma ainda maior capacidade de planeamento e de execução desse plano?
Sem essa vontade férrea, o E@D tornar-se-á uma terrível experiência de solidão. Use uma plataforma da escola (Moodle ou outra) onde define claramente o calendário do próximo mês (o que vai ser dado em cada semana) e defina clara e sucintamente os objetivos para cada dia da semana, dizendo que exercícios os alunos devem fazer até que data, onde carregam as resoluções, onde comentam resoluções de colegas, onde pedem ajuda, etc. Termine cada semana com um teste formativo online. Se conseguir gamificar a aprendizagem, tanto melhor. Convém conhecer bem alguma plataforma de aprendizagem (a SPM está a dar formação em Milage, que é grátis, tem gamificação e permite à turma estar com colegas e professor na plataforma; mas há outras praticamente grátis como a MathemaTIC desenvolvida em português pelo governo do Luxemburgo, etc.). E precisa perceber que o E@D lhe exige ser muito mais delicado, disponível, que nunca conseguirá exagerar nos estímulos positivos, nas pequenas tarefas com recompensa imediata, etc. Infelizmente, tudo isto são apenas pinceladas largas pois o E@D de qualidade é altamente técnico e exige formação dada por quem sabe.
Nunca como agora se falou tanto em modelos matemáticos para prever o futuro da pandemia. Esta crise da covid-19 está a tornar a matemática mais próxima dos cidadãos? Sim e não. Em certas áreas a matemática dá previsões milimétricas ( onde e quando ocorrerá um eclipse, por exemplo) e isso pode induzir o público a pensar que é sempre assim, o que não é verdade. Quando há tanta incerteza, como é o caso da covid-19, o máximo que se pode fazer é discutir cenários, o primeiro dos quais é ter uma ideia do que acontecerá se nada for feito, sensibilizando assim os políticos para evitar a materialização do cenário. Julgo que não perceber esta diferença entre previsão e cenário gerou ceticismo escusado, ou mesmo teorias de conspiração sem sentido. Por outro lado, termos como R0, Rt, imunidade de grupo, estão a entrar no vocabulário comum. A discussão destes conceitos e a perceção das capacidades e limites da modelação é certamente benéfica.
Pode a pandemia ser uma oportunidade para (pela pergunta anterior) atrair mais alunos para a disciplina? A média dos cursos de Matemática tem subido imenso (16 na FCUL, 16,5 no Porto, 17 na Nova, 18,8 no ISEG, e um pouco acima no IST), prova de que está a atrair os melhores alunos. Porquê a procura? Porque o mercado quer, a ponto de ser difícil segurar os alunos até ao fim do mestrado. Julgo que não exagero se disser que nunca houve tantos alunos tão bons em Matemática e nunca houve tão poucos interessados no doutoramento e na carreira académica. Além disso, vários rankings colocam atuários, estatísticos, data scientists e matemáticos entre as pessoas mais satisfeitas com o seu trabalho e salário, e com desemprego nulo, pelo que não foi a epidemia que colocou a matemática na moda. Mas agora há outra razão fortíssima para se querer ser matemático: até 2023 vão reformar-se 60% dos professores e os que estão a ser formados não chegam nem remotamente para as necessidades. Estamos em vésperas de um cataclismo educacional de proporções bíblicas.
Tal como na pandemia se fala muito
em matemática, a tecnologia está também a tornar a matemática mais próxima das novas gerações? Antes de mais convém observar que a tecnologia só é possível graças à matemática. Mas a tecnologia está a permitir várias revoluções. Quando antigamente havia apenas alguns especialistas em divulgação matemática, a internet é agora uma imensa sessão de divulgação, com histórias, experiências surpreendentes, piadas matemáticas, palestras de grandes estrelas, animação 3D para ilustrar conceitos, etc. Além disso, sempre foi útil aprender a mesma matéria em fontes diferentes, algo possível hoje numa escala sem precedentes (Kahn Academy em português, milhares de outros vídeos, milhões de páginas, milhões de ilustrações, exercícios resolvidos, etc.). Isto tem de provocar uma migração do centro de gravidade do ensino na direção do cumulativo conceptual, ao contrário do passado, colocado algures entre o enciclopédico e o conceptual. E esta migração vai dar ao professor um papel ainda mais central.
As empresas grandes e multinacionais passaram a não contratar apenas engenheiros e geeks, mas também matemáticos. A que se deve essa tendência? E considera que veio para ficar e porquê?
Os matemáticos desenvolveram técnicas eficientes em modelação, simulação, otimização, análise de dados, análise do risco, informática teórica, entre outras, que são vitais para qualquer empresa. A tendência na contratação de matemáticos para as empresas já existe, tem crescido nos últimos anos e há desemprego nulo entre matemáticos. O exemplo de outros países onde a transferência da matemática para a indústria está mais avançada mostra que Portugal tem grande margem de progressão. Os matemáticos têm competências no desenvolvimento de ferramentas teóricas por detrás da tecnologia, nos dados, nos modelos financeiros, e muitas outras áreas com curvas de aprendizagem hostis. A crescente penetração da inteligência artificial vai potenciar ainda mais o papel dos matemáticos na indústria. Hoje discute-se muito as modificações a curto e a médio prazo no mercado de trabalho, com a eliminação de profissões com tarefas repetitivas e pouca exigência intelectual, mas seguramente a profissão de matemático permanecerá (juntamente com a criação de muitas outras profissões novas que nem imaginamos). Portugalpontuamalfaceaoutros paíseseuropeusnoquetocaàsmédiasdeexamesdeMatemática.Que políticaspúblicassãonecessárias paracontornarestasituaçãoecolocaramatemáticanoutropatamar? Portugal pontuou muito mal na primeira vez que participou no PISA ou no TIMSS, mas subiu consistentemente até 2015, quando tivemos as melhores pontuações de sempre, atingimos a posição relativa mais elevada e tivemos o menor número de países europeus à nossa frente. No PISA de 2018 houve estagnação (relativamente a 2015), apontando para o preanunciado tombo no TIMSS 2019 (o equivalente à perda de quase um ano de escolaridade). Pior ainda, a mesma geração que no 4.º ano no TIMSS 2015 teve o melhor resultado de sempre, no 8.º ano (em 2019) teve um resultado muito mau. Mas mesmo quando fomos melhores, em 2015, ficámos a 77 pontos do topo (Singapura), ou seja, só os portugueses do 8.º ano conseguiriam ter no exame do 4.º as mesmas notas dos singapurenses do 4.º; e na Europa, só os nossos alunos do 5.º ou do 6.º anos conseguiriam as notas de irlandeses ou noruegueses do 4.º. Houve uma série de medidas na direção certa (sobretudo com Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada e Nuno Crato) que permitiram os resultados de 2015, mas medidas em sentido contrário levaram aos lamentáveis resultados de 2019. Mas o que importa sublinhar é que ainda havia muito por fazer em 2015: a afinação conseguida no tempo de Nuno Crato representava apenas meio caminho para a meta. E o que há a fazer é muito bem conhecido: na avaliação – esse mundo! –, nos manuais para professores, alunos, pais, na formação de professores e pais; perceber que a Educação é uma pasta técnica – como as Finanças ou a Economia – e não pode ser entregue a políticos profissionais mas educadores amadores; perceber que em ciências da educação há material excelente, mas há também material muito pernicioso e destrutivo; perceber que ensino básico e secundário pobres significa licenciados de fraca qualidade; perceber a urgência do tempo que se perdeu, e que é totalmente impossível ter um sistema a funcionar com mudanças de programa sempre que muda o governo. Em termos de avaliação, a SPM dá a sua contribuição oferecendo às escolas que o desejarem exames com características análogas a exames nacionais para os 4.º, 6.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º anos, a realizar na última quarta-feira de maio.
“Até 2023 vão reformar-se 60% dos professores [de Matemática] e os que estão a ser formados não chegam nem remotamente para as necessidades. Estamos em vésperas de um cataclismo educacional.”
“A crescente penetração da inteligência artificial vai potenciar ainda mais o papel dos matemáticos na indústria.”