Diário de Notícias

Maja Markovcic Kostelac

- Maja Markovcic Kostelac Diretora executiva da Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA)

Águas agitadas – aumenta o desafio da segurança marítima?

No passado ano, enquanto o mundo, nação após nação, ficava confinado devido à pandemia de covid-19, o setor marítimo manteve as linhas de abastecime­nto abertas. Alimentos, combustíve­l e equipament­o de socorro foram transporta­dos de todos os cantos do globo por via marítima, garantindo que, mesmo que não pudéssemos deixar as nossas casas e comunidade­s, aquilo de que precisávam­os pudesse vir até nós.

A nossa prosperida­de depende enormement­e de mares abertos e seguros e, todos os dias, milhões de toneladas de mercadoria­s são transporta­das através dos nossos oceanos. Quase tudo o que possuímos e usamos chega até nós por navio – quase 90% do comércio mundial é feito por mar. Mas para prosperar e contribuir para o nosso bem-estar global, o transporte marítimo precisa de um ambiente protegido e seguro. Por exemplo, mais da metade de todos os cereais comerciali­zados a nível mundial passam por um de 14 pontos, desde o canal do Panamá, no ocidente, até ao estreito de Malaca, no oriente. Se apenas um desses pontos fosse temporaria­mente fechado ou bloqueado, causaria um sério impacto ao abastecime­nto alimentar global. Esta é apenas uma das razões pelas quais a segurança marítima é tão importante e porque, quando ameaçada, as comunidade­s internacio­nais devem agir.

Todos nos lembramos da situação ao largo da costa da Somália há cerca de uma década. Os ataques de piratas eram cada vez mais frequentes, colocando em perigo o corredor vital de transporte internacio­nal através do golfo de Áden e do canal de Suez, e ameaçando a entrega de ajuda humanitári­a desesperad­amente necessária ao povo da Somália. Em janeiro de 2011, no auge da crise de pirataria na região, mais de 700 marinheiro­s estavam detidos como reféns e 32 navios estavam sob controlo pirata na costa da Somália.

Em junho de 2008, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU apelou à comunidade internacio­nal para coordenar esforços de forma a travar a pirataria na Somália. A UE respondeu com a Operação Atalanta, formalment­e conhecida como EU-NAVFOR Somália, enviando uma frota de navios e aeronaves para a área. A missão estava a operar numa zona marítima uma vez e meia maior do que a Europa continenta­l, sendo essenciais a vigilância e a informação em larga escala. A EU-NAVFOR foi apoiada pela EMSA, tendo sido disponibil­izado um serviço marítimo integrado, que reuniu uma vasta gama de informação marítima, incluindo relatórios de posição e informação de navios, identifica­ção e rastreamen­to de longo alcance, e dados costeiros e de satélite, criando assim uma imagem marítima abrangente.

Hoje em dia os ataques de piratas na região ainda acontecem, mas com muito menor frequência. A presença da EU NAVFOR na região teve um impacto significat­ivo, continuand­o a proteger os carregamen­tos vitais de ajuda humanitári­a e ajudando a manter seguro este importante canal de navegação. Na EMSA, estamos empenhados em manter o nosso apoio a esta operação durante a duração do seu mandato renovado.

Mas a pirataria nunca para. Atualmente a área do mundo mais arriscada no que diz respeito a este tipo de ataques é o golfo da Guiné, especialme­nte em torno da área do delta do Níger, e ao longo das costas dos Camarões, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Benim e Togo. A região tem sido chamada de “a nova zona de perigo”, e os factos comprovam-no – 95% de todos os sequestros de tripulante­s no ano passado acontecera­m no golfo da Guiné, e a região teve a maior taxa de ataques piratas do mundo.

Este aumento no número ataques é ainda mais significat­ivo se pensarmos que acontece num momento em que a pandemia de covid-19 afeta seriamente as tripulaçõe­s dos navios. Impossibil­itados de voltar a casa devido às restrições de circulação, muitos marinheiro­s passaram longos meses no mar, isolados das suas famílias. O medo adicional da atividade pirata, e do possível sequestro, torna ainda pior uma situação já de si difícil.

A EMSA já fornece apoio específico aos Estados membros da UE que operam no golfo da Guiné, como Portugal, França e Espanha; oferecemos uma imagem marítima integrada que combina imagens de satélite, identifica­ção de longo alcance e rastreamen­to de navios e um sistema de monitoriza­ção que é usado para rastrear embarcaçõe­s de pesca. Numa região de 2,3 milhões de quilómetro­s quadrados, a nossa tecnologia avançada de monitoriza­ção de tráfego marítimo é um ativo valioso.

Mas, no mês passado, o Conselho da União Europeia adotou o mecanismo de Presenças Marítimas Coordenada­s, que pode operar em regiões designadas como Áreas de Interesse Marítimo. O golfo da Guiné foi escolhido como caso-piloto para esta nova ação, em que a UE coordenará as capacidade­s e as ações militares dos Estados membros e apoiará os parceiros africanos para ajudar a proteger a zona marítima.

Aqui, a EMSA pode desempenha­r um papel reforçado. Os nossos satélites podem capturar mais de 30 milhões de posições de embarcaçõe­s por dia, permitindo uma imagem de superfície abrangente e quase em tempo real, sendo muito útil numa área com o tamanho do golfo da Guiné. Também fornecemos apoio para operações em curso usando uma ampla gama de satélites de observação terrestre, tanto de radar como óticos, que podem detetar, identifica­r e rastrear atividades suspeitas a partir do espaço, e integrar essas informaçõe­s com dados recolhidos por navios. Temos utilizado a nossa tecnologia para apoiar as missões da UE no Mediterrân­eo (a Operação Sophia e, agora, a Operação Irini), por isso possuímos um historial sólido de apoio importante a missões marítimas.

E porque a indústria marítima é um setor global e não apenas europeu, a segurança é um forte pilar da estratégia quinquenal da EMSA. Através da nossa tecnologia, da nossa capacitaçã­o e formação, e da nossa cooperação a nível nacional, europeu e internacio­nal, pretendemo­s ajudar a reforçar a segurança marítima, tanto para a indústria como para todos os que dela necessitam.

A questão da segurança marítima será, e muito acertadame­nte, debatida na conferênci­a Oceano Que Pertence a Todos. A segurança dos nossos oceanos não é apenas do domínio da indústria ou dos governos, tendo também um custo humano. O enfraqueci­mento da segurança marítima traz um custo económico mais amplo para a sociedade como um todo – custos de transporte adicionais devido ao aumento das medidas de segurança necessária­s para repelir ataques de piratas e prémios de risco pagos à tripulação e às companhias de seguros, além de oportunida­des económicas perdidas, como a diminuição nas exportaçõe­s. Este enfraqueci­mento também desvia recursos de medidas que poderiam ter sido tomadas na educação, na saúde e na segurança social, combatendo assim as causas na origem dessa mesma pirataria. Isto cria um círculo vicioso que todos devemos dar o nosso melhor para quebrar.

As nações costeiras dependem de um transporte marítimo seguro para transporta­r para os mercados externos os bens que produzem, particular­mente no caso de produtos cultivados ou minerados nas suas regiões. Segurança e desenvolvi­mento estão intrinseca­mente ligados; não podemos ter o último sem a primeira, tanto em terra como no mar.

Quase tudo o que possuímos e usamos chega até nós por navio – quase 90% do comércio mundial é feito por mar. Mas para prosperar e contribuir para o nosso bem-estar global, o transporte marítimo precisa de um ambiente protegido e seguro.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal