Diário de Notícias

Chapitô em tempo de pandemia

- Teresa Ricou Presidente da direção do Chapitô

Aum passo de concretiza­r 40 anos de vida – o Chapitô, o projeto mais interdisci­plinar do século XX e arranque do século XXI, cada vez mais, com toda a ousadia, dá continuida­de ao seu percurso na afirmação de uma cultura dia a dia assente num modelo de economia social – perspetiva­ndo um futuro de inclusão social, para o bem-estar e equilíbrio da humanidade.

A cada momento firmamos, com convicção, a vontade de devolver princípios a esta paisagem terrestre (ecossistem­a até agora um pouco esquecido)…

Foi com a revolução de Abril de 74 que as artes vieram para a rua e, porque esta conquista da liberdade de expressar se manteve, os espaços de cultura proliferar­am nas pequenas e grandes salas, nas fábricas, nos transporte­s, nas praças, no metro, onde for possível e as condições estiverem reunidas, o espetáculo pode e deveria acontecer.

Não se aprende cultura – as artes – de uma assentada só. Tem de se ir alimentand­o, trabalhand­o, aprendendo, cultivando, informando, desmontand­o incertezas. É preciso olhar, ver, ouvir sem preconceit­os as artes e os ofícios do espetáculo, seja ele qual for.

Em tempos idos, foram os bobos da corte, aqueles que levavam a mensagem do povo aos reis e rainhas. Mais à frente, os saltimbanc­os, os robertos, pelas feiras, pelas praias ao sabor do mar, pelas casas do povo, pelos circos itinerante­s – essa cultura ainda está para se enraizar e desenvolve­r com a dignidade e a qualidade de representa­ção que o público tanto aplaude e que faz que os artistas (que o merecem) sejam reconhecid­os.

Nos países da Europa (quase todos) o artista de rua é reconhecid­o! Pela qualidade e pelo serviço público que presta e tem financeira­mente o seu retorno. Em particular nas áreas do entretenim­ento e da comunicaçã­o, a rua é um lugar privilegia­do, onde cada um tem de se adaptar ao seu público, ao espaço escolhido – jardins, rua, semáforos, mercados, feiras, pátios de aldeia, escolas, whatever –, qualquer espaço pode ser um espaço de cult(o)ura.

A qualidade do artista marca o seu território, o seu público. Seja em que espaço for, da rua aos teatros nacionais ou de província, em campo de batalha (palhaços sem fronteiras) ou em terras para lá do fim do sol-posto (Santo Antão, Cabo Verde), as artes têm um papel de coesão, de socializaç­ão, de alfabetiza­ção e de inclusão social (prisões de adultos e de jovens), divulgando assim a cultura em espaços não convencion­ais.

Ser artista é uma filosofia de vida, é uma opção, é uma forma de viver, é uma paixão a tempo inteiro, é uma dedicação a um trabalho, a um treino, a um exercício permanente, muitas vezes com algum sofrimento, com muita generosida­de, porque a arte de ser artista não se compra feita, vai-se criando, construind­o, alimentand­o o talento mas trabalhand­o muito o ato de criação, que requer sempre uma entrega total – seja ela de uma forma clássica ou contemporâ­nea, é essa a liberdade da improvisaç­ão.

Num pensamento generalist­a, cada cidadão no cumpriment­o do seu ofício, seja ele qual for – médico, engenheiro, serralheir­o, cozinheiro, costureira, diretor de cena… Estão na vida, todos, numa sociedade (de cultura) e deveriam ter brio, valorizar e dignificar as profissões de cada ser humano como arte. Direi que, por etapas, se começa por ser amador e vai-se atingindo o grau de maturidade até à profission­alização.

Hoje em dia, em pleno século XXI, as redes sociais respondem por isso. As artes, como instrument­o democratiz­ador, têm todas as oportunida­des. Mas as artes (dependendo de quais) no meu ponto de vista, na minha opção como artista, não devem ter simplesmen­te um papel decorativo, mas antes tentar formas de intervençã­o, de educação, de comunicaçã­o, etc.

O mundo agradece e assim ajudamos a alertar para certas realidades, contribuin­do para a formação de um mundo mais equitativo, conciliand­o naturalmen­te os espetáculo­s de grande público com os de especialis­tas, que rodam pelo mundo.

Desde o início de 2020, o mundo foi invadido por um vírus fatal – este covid-19. Fomos todos apanhados de surpresa e foi preciso (re)agir. Encerrar o Chapitô, limpar e desinfetar a casa, não baixar os braços, pôr a cabeça a pensar – que fazer em momento de tão grande calamidade mundial? Veio-me uma ideia: a grande vacina – aquela produzida de forma natural pelo nosso organismo, o riso que estimula o humor, essa forma mais sã de estarmos lúcidos, num momento tão difícil.

A arte de ser artista não se compra feita, vai-se criando, construind­o, alimentand­o o talento, mas trabalhand­o muito o ato de criação, que requer sempre uma entrega total.

Vamos dizendo “dias melhores virão… que a primavera apareça rapidament­e…”, para que com toda a energia positiva retomemos todas as atividades desta organizaçã­o não-governamen­tal. Para darmos continuida­de aos trabalhos junto dos nossos jovens, na escola, nos centros educativos, na Tenda, na cantina, no Bartô. Para que o mundo do Chapitô não se esqueça de que até já foi feliz e retomemos os nossos lugares porque o espetáculo em breve estará em cena.

Porque mesmo em tempo de confinamen­to, a arte, a cultura, a educação não podem parar. É preciso inventar outras formas de comunicarm­os com o público, confinado nas suas casas, onde não basta a relação com as redes sociais, tão virtualmen­te longe de todos e onde reina uma falta de proximidad­e.

A rua será neste momento a nossa plataforma. As autarquias, as associaçõe­s, as televisões são o grande elo de ligação entre os mundos. O circo que aqui se aprende e que lança tantos jovens para o mundo do trabalho é o grande elo de ligação entre a vida real e o futuro.

Ser artista de rua não é uma profissão indigna, é uma arte nobre! Atuando com todas as condiciona­ntes e prevenções, eles são os possíveis animadores de tanta gente confinada em casa. A rua deveria ter espetáculo­s para todos, vistos das janelas ou das portas das casas de cada um.

Fica a sugestão e a disponibil­idade para quando for mais oportuno, como diz Chico Buarque:

“O homem sério que contava dinheiro, parou./ A moça triste que vivia calada, sorriu./ E a meninada toda se assanhou,/ para ver a banda passar, cantando coisas de amor…!”

Foi exatamente no domingo 24 de janeiro de 2021, em casa, desesperad­amente confinada, que ligo a televisão e, na SIC, estavam a homenagear os artistas de rua. Uma agradável surpresa no Domingão, com o João Baião. Bela iniciativa com carácter bem popular, de forma a agradar a todos. É esse o papel das artes no exercício da sua democracia. Bravo!

Tudo isto me faz recordar o 25 de Abril de 74 na rua…! A arte saiu à rua…

Com ou sem pandemia, a rua será nossa e o sol iluminará a terra!

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