Sebastião Bugalho
Melhor do que isto
O embate entre a biografia de Marcelino da Mata e o quadro de valores da III República tem que ver com o facto de a realidade de então ser uma impossibilidade de agora.
Num dos melhores guiões já escritos para televisão, Rust Cohle diz a Marty Hart, ao volante numa estrada do Lousiana: “O mundo precisa de homens maus. Mantêm os outros homens maus do outro lado da porta.” A vida não é um filme, ainda que a saga do tenente-coronel Marcelino da Mata pudesse inspirar vários. A frase, contudo, é acertada. Nos vários dias em que ponderei escrever este texto, lembrei-me muito dela.
Do Lousiana à Ilíada, a crueldade dos homens na avenida da história não é nova nem exclusiva. Quanto a Mata, Ájax (filho de Télamon, não o outro) é o guerreiro com que encontrei mais pontes para o português. Na guerra de Troia, narrada por Homero, é o único grego que sobrevive sem ferimentos cantados ou auxílios divinos. O seu desfecho trágico, esquartejando cordeiros tomando-os por inimigos, já depois de sair vencedor da epopeia, é uma imagem que perdura, que não ignora o efeito nefasto que a violência do campo de batalha carrega nas vidas dos que lá estiveram. Mata, contrariamente aos helenos no ventre do cavalo, recusava-se entrar em território inimigo sem anunciar a sua presença. O som da sua corneta era a chegada do terror. E talvez seja impossível compreender esse terror sem olhar para outras eras, em que os militares não marchavam fardados, as hierarquias se esgotavam no despotismo dos deuses e os códigos morais eram escritos a sangue.
Felizmente que, hoje, já não é assim. Felizmente que, hoje, nenhum jovem português tem de ver a irmã grávida ser assassinada diante dos seus olhos por tropas inimigas. Felizmente que, hoje, seria impossível um soldado responder a um oficial (“Eu nunca digo como faço as minhas operações”) como Mata respondeu ou ameaçar fugir do respetivo quartel caso não o enviassem para o terreno. As operações clandestinas continuam a fazer parte das democracias, mas dificilmente são alvo de homenagens por parte das democracias. O embate entre a biografia de Marcelino da Mata e o quadro de valores da Terceira República tem que ver com isso, com o outro tempo que ele viveu, mas que não escolheu viver. Com o facto de a realidade de então ser uma impossibilidade de agora.
Ao fim de uma semana de polémica, estou convencido de que a larga maioria dos portugueses não ignora as várias famílias que puderam ver os seus filhos e maridos regressarem a casa, resgatados por Marcelino da Mata. Que essa vasta maioria não o esquece nem deseja ver o que ele viu, fazer o que ele fez ou ser alvo da mais horrenda das torturas, no seu próprio país, como ele foi. Os pêsames do Presidente da República, da Assembleia e do ministro da Defesa Nacional representaram esse sentimento e, sobretudo, a ideia de que o país não tem de estar dividido entre saudosistas e ativistas, entre gente que quer apagar o passado e gente que gostava de ainda viver nele, entre aqueles que querem demolir o Padrão dos Descobrimentos e aqueles que gostavam que ele tomasse vida e se lançasse ao Tejo, em busca de glória, ouro e mundo.
Marcelino da Mata morreu pobre, com a ajuda e a generosidade dos seus camaradas de armas, sem chegar a beneficiar de algo tão básico quanto o estatuto do antigo combatente, somente aprovado no parlamento 46 anos após a guerra colonial. Nem o endeusamento de uns nem o preconceito de outros fizeram muito para o entender. O resto do país, acredito, é melhor do que isso.