Eutanásia com efeitos secundários
Foi o período mais negro das últimas décadas. Na última semana de janeiro, um mês depois do Natal, morreram em Portugal 4711 pessoas, quase metade delas vítimas de covid. Medidas de emergência todas ativadas, meios de socorro esgotados, pessoal e recursos dos hospitais para lá da linha vermelha. Enquanto isso, em São Bento – enquanto Portugal chorava os seus mortos e se afligia com os que estavam em risco de se somar a esse número terrível – 136 deputados aprovavam a despenalização da morte assistida.
Não discuto o que deverá pertencer à consciência e experiência muito pessoal de cada um. Mas o mau gosto, o mau princípio e o péssimo exemplo de se fazer aprovar uma lei de contornos sociais e efeitos tão sérios quando ninguém estava a olhar. Como quem desconfia que se seguir o caminho poderá encontrar obstáculos, até ter de se desviar e por isso foge pelo atalho. Num momento em que o país estava de luto e em emergência, a tentar salvar o máximo de vidas, 136 deputados aprovaram a morte assistida contra a opinião dos restantes representantes dos portugueses na Assembleia, contra os argumentos de especialistas e contra uma gorda fatia da sociedade civil portuguesa.
Agora, o Presidente da República enviou a lei para o Tribunal Constitucional. Sem questionar como se encaixa no direito à vida, mas levantando uma questão muito mais complexa: em que situação podemos aceitar que alguém possa ser ajudado a pôr fim à sua existência.
Se o caso de Ramón Sampedro se tornou sobejamente conhecido e levantou uma onda de solidariedade um pouco por todo o mundo, outros há relatados como bizarros mas de igual valor perante uma lei que não esclareça o que o Presidente pergunta agora ao Constitucional. Como o dos gémeos surdos de nascença que souberam que iriam cegar daí a uns anos e optaram por morrer porque não queriam ser dependentes. Ou a mulher que mudou de sexo para ser aceite pela mãe e nunca conseguiu ver-se na nova pele pedindo ajuda para deixar de viver. São casos reais, de pessoas reais. São as chamadas rampas deslizantes que o Presidente quer evitar na legislação portuguesa, questionando por isso o Constitucional quanto aos limites em que a eutanásia pode acontecer.
Efeito secundário: se o tribunal decretar que só pode haver morte assistida em caso de doença mortal – no fundo, abreviando o inevitável e iminente fim –, casos como o de Ramón Sampedro serão impossíveis em Portugal. Por muita solidariedade que gerem.
Foi isto que conseguiram os 136 deputados que aprovaram a morte assistida enquanto o país vivia a semana mais mortal do ano.
O PR enviou a morte assistida para o TC com uma pergunta complexa: em que situação podemos aceitar que alguém seja ajudado a pôr fim à sua existência.