Daniel Deusdado
Uma Vida Escondida
– testamento anti-chega
OMal existe. É ingénuo ignorá-lo, o silêncio torna-se capitulação. “Aproximam-se tempos mais negros, em que os homens serão mais inteligentes. Não combaterão a verdade. Apenas a ignorarão.”
Choquei contra o monumento erigido por Terrence Malick em Uma Vida Escondida (Hidden Life), na sexta à noite, no TVCine Edition. Foi candidato à Palma de Ouro em Cannes e venceu o Grande Prémio do Júri Ecuménico. Injustamente não fez parte da lista dos oscarizáveis de 2020.
O filme confronta-nos com a vida de Franz Jaggerstatter, um agricultor austríaco que se recusou a incorporar as fileiras do nazismo. “Eles pedem-te para jurares lealdade ao Anticristo. Eu sei, é uma vida sem honra. Será isto o fim do mundo? Será o fim da Luz?”, pergunta-lhe um amigo. O filme enquadra-nos no quotidiano feliz de uma normal família de lavradores de montanha (mulher, três filhas) até ao julgamento por desobediência ao Estado – desde logo pela recusa da “simples” saudação nazi.
Franz é aconselhado a ir ao bispo. Diz-lhe então: “Se Deus nos dá o livre-arbítrio, somos responsáveis pelo que fazemos... Quero salvar a minha vida, mas não através de mentiras.” O bispo responde-lhe: “Conhece as palavras do apóstolo (Paulo)? Que cada homem se submeta aos poderes que o regem.”
“Não podes mudar o mundo. O mundo é mais forte. Preciso de ti”, diz-lhe a mulher Franziska, num momento de quebra emocional. Mais tarde propõe-lhe a aceitação do alistamento militar como objetor de consciência: “Podias trabalhar num hospital (nazi). Não há mal nenhum nisso.” A mãe recorda-lhe: “És tudo o que tenho.”
Ele parte para as mãos dos nazis, ela fica com a dor da ausência, o duro trabalho agrícola, três crianças, uma sogra que a condena pela integridade e a condenação social da aldeia.
“O mundo inteiro está a afundar. Não há resposta. Segui-Lo é uma loucura...”, diz-lhe um amigo. O juiz-presidente do tribunal que o julga, diz-lhe em privado: “Crê que alguma coisa que faça mudará o rumo desta guerra? Ninguém mudará. O mundo continuará como dantes. Outro tomará o seu lugar.” Na visita à prisão o padre da aldeia implora-lhe: “Deus não quer saber do que dizes, apenas do que vai no teu coração. Presta o juramento e pensa como quiseres.”
Fazer de conta, temer, é uma capitulação. A imprensa livre e editorialmente séria não pode transigir, apesar das ameaças. Cá, como por todo o mundo, alguns jornalistas estão cada vez mais entregues a si mesmos neste combate contra o Mal. Abandonados pelos leitores pagantes, facilmente descartados pelas empresas editoriais nas mãos dos mecenas ou patrocinadores, sem futuro à vista. Mas, apesar de tudo isto, há um confronto interior guiado por um sentido de missão que ultrapassa por vezes o sentido de preservação da sua própria vida.
Falarmos da intimidação ao Miguel Carvalho, da Visão, ou ao Pedro Coelho, da SIC, pelos trabalhos sobre os bastidores do Chega, não faz esquecer tantos outros (desde logo aqui no DN) que não abdicam desta condição de vida frágil e sem rede – neste tema e em tantos outros, difíceis. “Nunca caminharás sozinho”, cantam os adeptos do Liverpool. Somos esses?
Malick termina o filme com uma frase de Mary Ann Evans, escritora e jornalista do século XIX que assinava com o pseudónimo de George Eliot: “... pois as melhorias do mundo dependem em parte de atos que não constam da história; e se as coisas não estão tão más para ti e para mim como poderiam estar, isso deve-se em parte àqueles que viveram fielmente uma vida escondida e que repousam agora em túmulos que ninguém visita.”