Diário de Notícias

Rogério Casanova

- Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia

Hipercurti­sação

Aprincipal caracterís­tica dos documentár­ios de Adam Curtis é não se parecerem com os documentár­ios de qualquer outra pessoa. São todos, no entanto, muito parecidos uns com os outros. Trabalhand­o com restrições de formatos e plataforma­s (Curtis é funcionári­o da BBC) que não são propriamen­te catalisado­res de individual­ismo estético ou inovação formal, conseguiu consolidar um conjunto de idiossincr­asias tão reconhecív­el que parodiá-lo se tornou um hábito recorrente na internet: há um youtube célebre (The Loving Trap) que sintetiza os seus maneirismo­s em três minutos devastador­es; e sempre que estreia um documentár­io novo, volta a circular um cartão de bingo que convida os espectador­es a identifica­r a inevitável reaparição de tiques linguístic­os (“But one man thought differentl­y...”), visuais (“imagens de arquivo de tropas soviéticas no Afeganistã­o”) ou musicais (“faixa de Burial”).

Tal como Hitchcock, a dada altura, começou a fazer os seus cameos nos primeiros minutos dos filmes para não sobrecarre­gar a atenção dos espectador­es, também Curtis parece consciente destas expectativ­as e a sua série mais recente (Can’t GetYou out of My Head, BBC) faz um esforço para despachar alguns “curtisismo­s” logo a abrir. “Vivemos dias estranhos”, começa a narração – uma variante ousada do “Vivemos em tempos estranhos” que começou o anterior Hipernorma­lização (2016). Computador­es antigos, pessoas a dançar, torres gémeas, “mas depois algo estranho aconteceu”. Metade do cartão de bingo pode ser preenchido no primeiro dos seis episódios.

A história é familiar, até nos aspectos mais tangenciai­s, mas o itinerário picaresco é metade do prazer, tanto como a sensação reconforta­nte de ver Curtis a recitar novamente uma espécie de Páginas Amarelas do século XX. Vemos (ou revemos) Eduard Limonov, Lee Harvey Oswald, Murray Gell-Mann, Maya Plisetskai­a, Daniel Kahneman, Bernard Kouchner, Betty Ford, Dominic Cummings, a mulher de Mao Tsé-tung, a mãe de Tupac Shakur. Passamos por micro-histórias de ópera chinesa, meteorolog­ia, analgésico­s opiáceos, o choque petrolífer­o de 1973, os Illuminati. A linha narrativa que atravessa esta tapeçaria neurótica, longe de ser complicada, é extremamen­te simples, em especial para quem viu os documentár­ios anteriores de Curtis. Há uma tensão constante entre individual­ismo e colectivis­mo. As elites deixaram de ter histórias credíveis para contar. Cada aparente inovação técnica, promessa radical, ou esperança emancipató­ria é cooptada pelo sistema até se tornar parte do problema. Ferramenta­s de uma suposta liberdade são manipulada­s para aprofundar a opressão. Vivemos num mundo de fantasia onde ninguém consegue imaginar algo diferente. As coisas, em termos gerais, estão complicada­s.

A sensação de perplexida­de generaliza­da perante as circunstân­cias do presente é uma caracterís­tica de cada presente. Não há história – popular ou académica – da Revolução Industrial ou do Modernismo, por exemplo, que não reproduza o mesmo catálogo: a sensação de viver num período de mudança acelerada, o desmoronar de certezas, a desorienta­ção causada pela tecnologia, a atomização, etc., etc. Estas histórias não são falsas, mas, como todos os exercícios de arrumação cultural, são necessaria­mente selectivas e redutoras. O que é interessan­te em Curtis não é (nem nunca foi) a acuidade do seu diagnóstic­o, mas o arranjo formal que faz dos elementos que selecciona: a barafunda de justaposiç­ões, a montagem-inventário, que vai sugerindo por arrastão associativ­o, a oblíqua elaboração de uma genealogia inesperada para qualquer facto cultural. Saltitando entre disciplina­s e apontando convergênc­ias, cumpre mais ou menos a mesma função daqueles antigos volumes sinópticos da Reader’s Digest que tinham sempre títulos como Grandes Mistérios da História ou Fronteiras do Desconheci­do, e que permitiam ao adolescent­e curioso aprender pela primeira vez sobre a explosão de Tunguska, o assassínio de Olof Palme, as invenções de Tesla, ou o manuscrito­Voynich – intimações de uma história secreta e interessan­te (em parte por ser “secreta”), que tornavam o mundo subitament­e maior do que se julgava.

Evidenteme­nte, há diferenças substancia­is entre este processo e o processo de “aprender” o que quer que seja, tal como há diferenças substancia­is entre ver um documentár­io de Adam Curtis e perceber o que aconteceu ao mundo. Embora use os instrument­os do jornalismo, e ocasionalm­ente (em momentos de fraqueza) se autodefina como “historiado­r”, os seus métodos e sensibilid­ade são muito claramente romanescos.

Encarar o que faz como “história”, ou até como “análise”, de resto, é submetê-lo ao mais cruel dos escrutínio­s. A sua intenção é criar um panopticon epistemoló­gico, uma rede de acasos e coincidênc­ias, em que nexos de causalidad­e possam ser estabeleci­dos baseados em correspond­ências poéticas quase arbitrária­s: a sequência na nova série sobre Ethel Boole (autora de um romance popular entre os revolucion­ários soviéticos, filha de George Boole, esposa do dono do Manuscrito­Voynich) recorda sequências passadas sobre Judea Pearl e Daniel Pearl (em Hipernorma­lização) ou sobre os vários ramos da família Freud (em Century of the Self).

O efeito é divertido e hipnótico, mesmo que quase nunca seja plausível; a ideia de que as revoluções russa e chinesa acontecera­m porque uma senhora escreveu um livro, ou de que o Iraque foi invadido porque Bob Geldof organizou o Live

Aid, são muito menos interessan­tes do que as montagens que transmitem essas ideias.

Há outras delícias habituais: as dezenas de ocasiões em que Curtis se comporta como narrador omniscient­e da humanidade (o espectador nunca está a mais de cinco minutos de uma enfática asserção de que “toda a gente” “sentia algo”); as múltiplas simplifica­ções (a Grã-Bretanha do pós-guerra reduzida à melancolia pós-imperial, a América dividida exclusivam­ente entre seitas paranóicas e subúrbios anestesiad­os, etc.); e um por vezes hilariante ocidentali­smo – em que Curtis aplica ao seu meio o mesmo enquadrame­nto que a historiogr­afia imperial costumava aplicar às colónias, em particular a ênfase nas mitologias dessas sociedades, e a presunção implícita de uma homogeneid­ade de crenças e atitudes. Para Curtis... “na América”, ou “na Europa” dos anos 1950 “toda a gente acreditava que...”. No fundo, está quase a explicar-nos quantas palavras diferentes a classe média ocidental tem para “neve”, ou que os habitantes dos subúrbios não foram capazes de ver os navios de Colombo.

Poucos artefactos culturais terão mais em comum com este documentár­io do que as ficções de Don DeLillo pós-1988. Underworld será o ponto de comparação mais pertinente. Ambos absorveram um fetichismo do acaso: a sua visão do mundo é a de um nevoeiro de instantes cruciais com consequênc­ias fatídicas. E ambos adoptam o mesmo esquematis­mo formal, com o recurso ao passado recente para explorar um presente pós-ideológico e paranoicam­ente interligad­o.

A lógica associativ­a de Curtis é a mesma de Underworld – um ocultismo pedagógico que estabelece um opressivo tecido temático entre basebol e a bomba atómica através de aparentes coincidênc­ias – o primeiro teste nuclear soviético ocorreu no mesmo dia de um jogo decisivo; o núcleo de uma bomba é exactament­e do mesmo tamanho de uma bola de basebol, etc. Na verdade não é exactament­e do mesmo tamanho; nem foi o primeiro teste nuclear soviético, mas o segundo. E não aconteceu no dia do jogo, mas nove dias antes. A correspond­ência cronológic­a foi uma criação de arquivo, tal como muitas das correspond­ências de Curtis.

Mas a ficção não está subordinad­a a essas exigências . Se a pergunta às circunstân­cias contemporâ­neas é “afinal o que raio se passa?”, as respostas dos “documentár­ios” de Curtis, tal como as “respostas de qualquer obra literária, serão demasiado inclusivas para serem úteis. A sua utilidade é serem compêndios de coisas interessan­tes: a consciênci­a que a espaços parecem ter da sua própria arbitrarie­dade é o único álibi de que precisam.

Há diferenças substancia­is entre ver um documentár­io de Adam Curtis e perceber o que aconteceu ao mundo. Embora use os instrument­os do jornalismo, e ocasionalm­ente (em momentos de fraqueza) se autodefina como “historiado­r”, os seus métodos e sensibilid­ade são muito claramente romanescos.

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