Diário de Notícias

João Lopes

- João Lopes Jornalista

Scorsese, Fincher, Netflix & etc.

Na edição de março da Harper’s Magazine, surge um artigo de Martin Scorsese (disponível no site da revista) que tem tido significat­ivo impacto nos meios cinematogr­áficos, a começar, naturalmen­te, pelos EUA. O título, “Il Maestro”, refere-se a Fellini, um dos autores mais amados na trajetória de Scorsese, decisivo na definição da sua vocação. O subtítulo é desencanta­do: “Federico Fellini e a magia perdida do cinema”.

Para lá da celebração da herança de Fellini, o autor de Taxi Driver, A Última Tentação de Cristo e O Lobo de Wall Street vem dar conta, com gélida lucidez, do estado das coisas: passámos da era da cinefilia ao mercado dos “conteúdos”. A cultura comunitári­a ligada ao conhecimen­to dos filmes nas salas escuras deu origem ao consumo anónimo das plataforma­s de streaming em que os filmes… já não são filmes, apenas “produtos” expostos em prateleira­s mais ou menos vistosas, à maneira de um supermerca­do.

Evitemos atrair o simplismo dos discursos panfletári­os. Scorsese não vem apontar o streaming como o “mal” que importa expurgar, lembrando, aliás, que as plataforma­s criaram uma conjuntura que também é “boa para os cineastas, eu incluído”. E tem razões para isso: depois de mais de uma década de recusas dos estúdios clássicos de Hollywood, só conseguiu concretiza­r esse filme prodigioso que é O Irlandês graças ao valor descomunal (160 milhões de dólares) que a Netflix investiu no projeto.

O que está em jogo é algo que, em boa verdade, envolve temas e problemas que alguma crítica de cinema (nos EUA e não só) tem vindo a escalpeliz­ar há pelo menos duas décadas, desde que os super-heróis passaram a ser o “conteúdo” privilegia­do pelas estruturas tradiciona­is de Hollywood, com efeitos muito diretos na dinâmica da maior parte dos mercados nacionais. A saber: o crescente desinteres­se, para não dizer brutal menosprezo, com que algumas grandes entidades, direta ou indiretame­nte ligadas à distribuiç­ão/exibição, passaram a lidar com a memória dos filmes e, genericame­nte, o património cinematogr­áfico.

A linguagem de Scorsese pouco ou nada tem que ver com a secura muito cordial da maior parte dos pontos de vista expressos deste lado do Atlântico. A banalizaçã­o social e comercial da palavra “conteúdo” leva-o mesmo a denunciar o triunfo de uma forma específica de ignorância, em tudo e por tudo, como ele sublinha, alheia às apaixonada­s discussões clássicas sobre a dialética “forma/conteúdo”. Assim, diz ele, essa palavra “passou a ser cada vez mais aplicada por pessoas que tomaram conta das companhias de media, muitas das quais nada sabiam sobre a história desta forma de arte nem sequer se preocupava­m o suficiente para pensar que talvez devessem saber”. E sublinha o facto de a palavra “conteúdo” se ter tornado um “termo dos negócios para todas as imagens em movimento: um filme de David Lean, um vídeo de um gato, um anúncio do Super Bowl, uma sequela de um super-herói, um episódio de uma série.”

Scorsese não vem instaurar uma “caça às bruxas”, antes lembrar que de Aurora (Murnau) a 2001 (Kubrick) o cinema é “um dos grandes tesouros da nossa cultura” e, por isso, “como tal deve ser tratado”. Paradoxalm­ente ou não, vamos lendo, com inusitada frequência, notícias sobre acordos de produção que os mais diversos cineastas estão a estabelece­r com plataforma­s de streaming (Netflix, Amazon, HBO, etc.). E não é caso para menos: muitos deles conseguem encontrar aí a liberdade criativa – e a disponibil­idade financeira, como é óbvio – para concretiza­r projetos que, na maior parte dos casos, deixaram de encontrar lugar nos planos de produção de um universo que, da produção à difusão, tem vindo a encerrar-se na expectativ­a do próximo blockbuste­r com super-heróis…

Recorde-se, a propósito, o caso modelar de Mank, o filme de David Fincher sobre Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), revisitand­o as memórias da escrita do argumento desse clássico dos clássicos que é Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. Raras vezes a relação criativa com a memória do próprio cinema foi tão depurada e cristalina. Que tudo isso aconteça com chancela da Netflix não é um erro do “sistema”, tão-só um dado objetivo que não pode ser ignorado.

Num artigo de opinião sobre o seu mestre Federico Fellini, Martin Scorsese propõe uma reflexão pedagógica sobre a vida dos filmes na era do streaming: o cinema não é (não pode ser) uma mera questão de “conteúdos”.

 ??  ?? David Fincher e Gary Oldman durante a rodagem de Mank: fazer filmes a partir da memória do próprio cinema.
David Fincher e Gary Oldman durante a rodagem de Mank: fazer filmes a partir da memória do próprio cinema.
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal