Há verdadeiros tesouros escondidos debaixo do chão nas ruas de Lisboa
Sob o chão da capital têm sido descobertas relíquias que ajudam a contar a história da cidade. A gestão destes achados é da competência da DGPC, mas a falta de espaço físico exige novas soluções.
Ruínas romanas encontradas na obra de um hotel são o mais recente achado.
Éum barco de 27 metros, do final do século XVII e início do século XVIII, bem preservado e preparado para a navegação atlântica. Pouco mais se sabe sobre a embarcação descoberta há umas semanas nas obras para construção de edifícios para um hotel e para apartamentos na Avenida 24 de julho, zona ribeirinha de Lisboa. Esse é o trabalho dos arqueólogos que acompanham a intervenção e que, no fim do processo, deverão depositar este achado e o restante espólio arqueológico recolhido. O local é que ainda não foi definido, estando previsto no relatório técnico que a direção científica do projeto proporá à tutela do património o destino do espólio. A questão da limitação física para albergar a enormidade de material exumado do subsolo de Lisboa, mas também do país, é uma das mais difíceis de resolver. “As reservas são finitas, mas o espólio não é finito”, resume António Marques, coordenador do Centro de Arqueologia de Lisboa.
Este organismo da autarquia lisboeta tem como objetivo acompanhar e gerir aquilo que é a informação recolhida no subsolo da capital. De acordo com a legislação, esta é uma competência da administração central, através da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), mas a autarquia criou uma estrutura interna que desempenha esse papel. “Não havendo essa partilha de informação – as autarquias não têm conhecimento das realidades arqueológicas que vão surgindo nos seus territórios –, a Câmara disponibilizou-se para ir acolhendo e recebendo os espólios que são exumados nas centenas de escavações que ocorrem anualmente em Lisboa por força do enorme impulso urbanístico que a cidade conheceu”, explica António Marques.
Segundo a DGPC, “os espólios arqueológicos recolhidos nas interestando venções arqueológicas realizadas no concelho de Lisboa são depositados, após cumpridos os procedimentos previstos na legislação, no Centro de Arqueologia de Lisboa”, na sequência de um acordo de colaboração datado de 2012.
O destino da embarcação está por definir, mas as características deste achado tornam o seu armazenamento ainda mais complexo. “Os espólios orgânicos, em especial grandes conjuntos como são as embarcações, implicam tratamentos muito caros e morosos, e grandes áreas para trabalhar, mas temos outro problema técnico, que é não termos capacidade logística e técnica para acolher e tratar este tipo de espólios, estas grandes embarcações que aparecem nas zonas ribeirinhas”, explica António Marques.
Esta não foi a primeira embarcação a surgir em obras na capital. Mesmo ao lado, nos trabalhos de construção da sede da EDP, há quase uma década, encontraram-se duas grandes embarcações deste período, que estão num depósito do Centro de Arqueologia de Lisboa, uma garagem de dois pisos num edifício residencial da zona do Rego, uma delas a ser estudada para uma tese de doutoramento.
Cemitérios arqueológicos
A solução para a falta de espaço pode passar pelos “cemitérios arqueológicos”, locais onde algum deste espólio é enterrado depois de estudado. Foi o que aconteceu a um conjunto de peças de madeira que compunham uma rampa/cais de acesso ao rio, recolhidas na intervenção realizada na Praça D. Luís I, junto ao Mercado da Ribeira, no âmbito da construção de um parque de estacionamento. Neste caso, as peças foram soterradas na pista dos fuzileiros no Arsenal do Alfeite, em Almada, “de modo a providenciar a sua permanência em ambiente encharcado” e assim manter as condições de conservação, explica a DGPC. Além deste caso, “apenas foi formalmente autorizado o reenterramento de material arqueológico, já estudado, no interior das estruturas que se encontram cobertas do Sítio Arqueológico dos Perdigões [Reguengos de Monsaraz], povoado pré-histórico classificado como Monumento Nacional”.
“É natural que as nossas famosas caravelas comecem a aparecer, e infelizmente nós não estamos preparados para receber, tratar e acolher esse tipo de tesouros que existem no subsolo de Lisboa”, alerta António Marques, salientando a importância de debater o que fazer com este tipo de espólio, tão importante para a memória de Lisboa. “Estamos a falar dos barcos e daquilo que é o principal ADN da cidade, que é precisamente esta capacidade de comunicação com o mundo através deste fantástico estuário.”
A descoberta de barcos no subsolo desperta sempre grande interesse, mas são inúmeros os tesouros que se têm exumado do subsolo de Lisboa. A cidade tem vivido um ritmo urbanístico muito acelerado, o que fez que a atividade arqueológica também acelerasse. António Marques estima que as intervenções rondassem as 20 ou 30 por ano até há uma década, quando passaram a ser mais 500 anualmente. “Nos termos do Plano Diretor Municipal e dependendo da zona da cidade, poderá ser obrigatório ter uma equipa de arqueologia a acompanhar a obra”, explica.
Basta abrir um buraco para colocar ecopontos subterrâneos para encontrar um cemitério medieval, como aconteceu há cerca de três anos no Poço do Borratém, junto ao Martim Moniz. Ou basta esburacar para construir um hotel para se detetarem vestígios. “Com a descoberta de uma inscrição fenícia aqui em Lisboa, nas obras do Eurostar Museum Hotel, ficou claro que a presença fenícia em Lisboa era muito mais impactante do que aquilo que nós esperávamos, a ponto de a escrita já ser utilizada entre essa população”, conta António Marques. O hotel, junto ao Campo das Cebolas, integrou no edifício os mais importantes achados, mas ficou sem parque de estacionamento.
“Com a descoberta de uma inscrição nas obras de um hotel, ficou claro que a presença fenícia em Lisboa era muito mais impactante do que aquilo que nós esperávamos.”
“Todos os achados são importantes, mas aqueles que talvez causem mais excitação são os achados que se prendem com a Pré-História, porque são os mais raros, e aqueles que acabam por ser um pouco mais simpáticos porque não dão esta enorme quantidade de espólio de épocas mais recentes”, explica António Marques. Das obras no Campo das Cebolas saíram cerca de mil contentores com achados, e dos terraços do Carmo outros tantos. As faianças que vieram desta intervenção junto ao Convento do Carmo estão na sede do Centro de Arqueologia de Lisboa, em Belém, onde, até ao confinamento, dois arqueólogos se dedicavam aos cacos para montar complexos puzzles. É ali que está o material para ser estudado e trabalhado no laboratório de conservação e restauro, como o espólio vindo da necrópole da Calçada do Lavre ou as ânforas recolhidas nas obras de construção do parque de estacionamento na Praça D. Luís.
Espólio em parte incerta
Mas a autarquia perde o rasto a muito do material encontrado nas centenas de intervenções que decorrem na cidade. “Sabemos que há uma série de locais que têm dado boas coleções de arqueologia, mas que o espólio não tem sido entregue. A Câmara de Lisboa não sabe o que se passa com esse espólio, provavelmente estará em casas particulares ou nas instalações de algumas empresas de arqueologia. Mas isso é função da DGPC, que saberá onde param as coleções”, diz António Marques. De acordo com a legislação, o diretor científico de cada intervenção é o fiel depositário do espólio até ao depósito provisório na instituição proposta no relatório final ou determinada pela DGPC num prazo que vai até cinco anos, mas que pode ser prolongado. “Atendendo ao facto de múltiplos espólios arqueológicos se encontrarem na posse dos investigadores, na qualidade de fiéis depositários, a DGPC não tem esse mapeamento atualizado”, admite a tutela.
Tendo competência para todo o território nacional, a DGPC explica que, de acordo com a legislação, “os espólios provenientes de trabalhos arqueológicos são depositados em unidades museológicas com coleções de arqueologia pertencentes à Rede Portuguesa de Museus”. Além disso, tem vindo a ser criada uma rede de reservas de espólios arqueológicos no território nacional continental, através da celebração de protocolos entre entidades públicas, nomeadamente municípios, e privadas, como fundações e associações de defesa do património. Finalmente, diz a DGPC, foi recentemente criado um grupo de trabalho que deverá “propor soluções sustentáveis para a guarda, conservação, inventário e estudo dos espólios arqueológicos, incluindo a criação de uma Rede Nacional de Reservas Arqueológicas”.
O risco de ter espólio arqueológico à venda na Feira da Ladra existe, confirma António Marques. “Não tenho conhecimento dessas situações. Não digo que, pela forma que a legislação está feita, não possa ocorrer. Claro, é um risco”, afirma, salientando que “existe a ética profissional” e que essa prática é crime. O mesmo realça a DGPC: “A venda de bens arqueológicos provenientes de intervenções arqueológicas é punível por lei, competindo à IGAC [Inspecção-Geral das Atividades Culturais] e à PJ a aferição de eventuais ilícitos criminais.”
Os achados arqueológicos podem ser um pesadelo para um promotor de obra, pois a intervenção arrisca tornar-se mais cara, demorada e até sofrer alterações. Na lei está claro que o material tem de ser recolhido, inventariado e entregue à tutela. “A questão do estudo do espólio não é clara, a legislação é um bocado omissa nesse aspeto”, alerta o responsável pelo Centro de Arqueologia de Lisboa. “Aquilo que está a acontecer é que há uma quantidade de coleções de arqueologia que não está a ser possível processar, estudar e rentabilizar e tirar delas toda a informação que potencialmente nos podem fornecer.”
Segundo a DGPC, foi criado um grupo de trabalho que deverá “propor soluções sustentáveis para a guarda, conservação, inventário e estudo dos espólios arqueológicos”.