Diário de Notícias

O DJ que faz comida para fora. “As chamuças são boas, mas é da música dele que o mundo precisa”

FÁBULAS DA PANDEMIA Meses sem trabalho como DJ, 30 euros na conta e uma brincadeir­a puseram Marco a fazer chamuças. “É uma metáfora do que está a acontecer”, comenta um responsáve­l do Lux, onde este filho de uma minhota e de um goês nos dava música.

- TEXTO FERNANDA CÂNCIO

Q “uando és skater, tens uma posição por defeito: ou o pé direito à frente ou o esquerdo. Fazer switch stance significa trocar a posição, andar ao contrário, tentar o mais difícil.” Arriscar. Marco Antão sabe do que fala, e não apenas por ter sido skater profission­al; está habituado a trocar o pé, a mão, o corpo, a cabeça, de sítio. E a cair: um skater cai muito, lesiona-se, torce tendões, parte ossos. Ser skater é cair em movimento. Como na canção de Laurie Anderson, Walking and Falling : “And you don’t always realize it but you’re always falling / With each step you fall forward slightly./And then catch yourself from falling./ Over and over, you’re falling./ And then catching yourself from falling/ And this is how you can be walking and falling at the same time.” Ou no dito de Beckett: falhar, falhar sempre, falhar melhor. Não é que seja preciso ser skater para falhar e cair, mas nos skaters é uma definição de trabalho: sabes que vais cair, magoar-te e levantar-te. Esperas levantar-te.

Como agora: DJ e músico, Marco, que escolheu para nome de guerra das pistas um trocadilho com o skate – Switchdanc­e –, fez em julho um post no Instagram, na brincadeir­a, sobre chamuças. “No primeiro confinamen­to estava em casa aborrecido e lembrei-me de que uma amiga italiana ao provar as chamuças da minha mãe gostou muito e disse que queria aprender. Então pensei que podia levá-la à minha mãe e eu aprendia também.” Assim foi. Fizeram 200, 100 para cada um. “Quando acabámos tirei uma foto para o Instagram e escrevi algo do género: ‘Malta, isto está complicado, estamos há meses sem trabalhar – vou fazer switch do meu business para chamuças. Quem gosta de chamuças marque três amigos que gostam também e eu ofereço’.”

Interrompe a narrativa, ri. “Não vais acreditar o que foi aquilo. Toda a gente a nomear três amigos e a dizer que queria, e eu ‘pá, estava a gozar, não vou fazer chamuças para vender e muito menos para oferecer’.” Tanto interesse, porém, pô-lo a pensar. “Não conseguia dormir. Tinha 30 euros na conta e pensei: “Se calhar ainda faço aqui 150. No dia seguinte resolvi assumir – em 12 horas despachei as 100 chamuças.”

Dos refogados no Boom ao “Marco das Chamuças”

O preço – 1,5 euros por chamuça – foi fixado com uma consulta aos dos restaurant­es. “Como vendi tudo tão depressa, criei uma página no Instagram, o Switchsamo­sa.” De repente, começou a conseguir “pagar as contas e ainda pôr de parte algum. Não estava nada à espera disto. E está também a ser uma aproximaçã­o à minha mãe. Vieram-lhe lágrimas aos olhos quando vendemos as primeiras chamuças.”

Apesar de a ascendênci­a goesa ser do marido, a mãe aprendeu as receitas indianas em livros de cozinha. “Eram em inglês, o meu pai traduzia para ela”, conta Switch, que herdou a mão para os tachos. Pedro Fradique, um dos responsáve­is da discoteca lisboeta Lux-Frágil, na qual Marco é DJ residente desde 2010, lembra-se de aferir do jeito no festival Boom, em Idanha-a-Nova: “Cheguei lá e ele, que tinha ido como DJ, estava a cozinhar para o grupo todo, a fazer um alto refogado. Tinham uma tenda no acampament­o que era só despensa. Convidaram-me para jantar e acho que nunca comi tão bem no Boom.”

Mas andamos muito depressa para trás. Ainda vamos no momento em que, aflito de dinheiro ao fim de cinco meses de confinamen­to, com bares e discotecas fechados, Marco, que em todos os anos de DJ só teve um contrato de efetivo, no Rive Rouge (aberto por Manuel Reis, criador do Lux e do Frágil, em novembro de 2016), descobriu uma forma de não desesperar. O negócio foi ganhando tração no boca-a-boca e no início de fevereiro a SIC fez uma peça com ele, o DJ que faz chamuças para sobreviver. A partir daí, conta, foi a loucura.

“Na rua, dizem ‘olha o Marco das chamuças’.”

Uma fama instantâne­a cuja ironia é acusada por quem pertence ao meio. No Facebook, entre aplausos, corações e o interesse pelas chamuças, o músico e produtor Luís Nunes, aliás Benjamim, sente-a. “Deixa-me um bocado triste. Mas este é o espírito, resistir. Ir inventando forma de sobreviver à pausa forçada.”

Porque, claro, há um Marco antes e para lá das chamuças, o de olhos sérios que diz “a última coisa que quero fazer é vender os meus instrument­os, por questões económicas ou por não acreditar que vai haver mais música”, enquanto se diverte com este switch inesperado.

O de quem Pedro Fradique garante: “É daqueles gajos mais conhecidos fora do que aqui. Tem um público global e uma rede de conhecimen­tos internacio­nal muito interessan­te. E anda sempre à procura, não se distrai. Sabe o que quer fazer.” O que tem composiçõe­s como O Amolador – cujo mote é o assobio com o qual os amoladores se anunciavam – e dos melhores DJ internacio­nais de música eletrónica (Solomun, Dixon, DJ Harvey) a passá-las pelo mundo. Que está a terminar um disco com o ex-herói do mar Carlos Maria Trindade – o primeiro do projeto Surto, nome escolhido antes da pandemia, presságio ou maldição.

O Marco a quem João Botelho, realizador, assíduo do Lux e autor do vídeo de O Amolador, faz uma declaração de amor: “Adoro o rapaz. Para já porque é um bom rapaz, não tem maldade. E é um criador, não é um DJ. Eu gosto de DJ, claro, mas ele tem uma coerência que os outros normalment­e não têm. Ele inventa a música. Vai buscar coisas orientais, croatas, brasileira­s, da África negra, e faz uma construção musical. E está sempre atento. Tem uma narrativa musical própria.”

Este Marco, nascido há 37 dezembros na Alfredo da Costa e cuja história de vida talvez ajude a explicar a profundida­de arrebatado­ra e por vezes sombria dos seus sets – “Adoro mas dão-me vontade de chorar”, disse uma das barwomen do Lux a Pedro Fradique.

Que, malgrado a timidez, começou cedo na vida pública por via do skate: aos 15 já tinha os primeiros patrocínio­s e aos 21 chegou a campeão nacional profission­al. Que estudava ao mesmo tempo, com a ideia de seguir desporto ou fisioterap­ia, mas quando ia fazer os exames para entrar se viu descarrila­do por um drama familiar. “A minha mãe saiu de casa e o meu pai teve uma grande depressão. Fiquei a

Pôs uma foto no Instagram quando aprendeu, e escreveu: “Malta, isto está complicado, há meses sem trabalhar – vou fazer switch do meu business. Quem gosta marque três amigos (...)”. Foi a loucura.

cuidar dele.” Anos disso, até que se sentiu a dar em maluco. “Os meus colegas a acabar os estudos, a começar a trabalhar e eu ali em loop a tratar do meu pai, que entretanto estava com Parkinson. Não me arrependo de nada, mas tinha de decidir o que fazer à minha vida.”

Pediu finalmente ajuda aos tios paternos. E à mãe, que o ajudou a pagar um curso de produção de eventos e espetáculo­s. É então que dá os primeiros “toques de DJ”.

“Venho aqui para dançar, não é para cortar os pulsos”

Música. A paixão é pelo menos tão antiga como a do skate. “Começou em miúdo – passava a vida a fazer downloads até que os meus pais me puseram de castigo por causa das contas de telefone de 500 euros.

E quando viajava para os campeonato­s de skate pediam-me para tratar da banda sonora nas carrinhas, ou às vezes quando íamos para os bares diziam para pôr CD. Mas apesar de ter investido imenso em discos via como uma brincadeir­a. Até que um amigo me disse para experiment­ar pôr música no Purex.”

Foi nesse pequeno bar no Bairro Alto que a partir de 2006/2007

Switch aprendeu “a ler as pessoas. E a esvaziar pistas”. Ri. “É o que acontece quando se arrisca. Não no Purex, as pessoas eram muito abertas.”

Foi praticamen­te DJ residente ali enquanto ia tocando noutros sítios – Lounge, Incógnito, etc. “Comecei a achar que tinha de criar a minha identidade musical. Numa quinta-feira saí do Purex e passei à frente do Lux. Vi que tocava o James Holden [DJ, produtor e músico britânico], consegui entrar e percebi que ele estava a passar as músicas que eu passava e ninguém gostava, mas ali estava toda a gente a dançar. E pensei: ‘Vou ser fiel ao que gosto’.”

Não foi fácil: “Comecei a ter dificuldad­e em arranjar datas porque tocava música viajante, introspeti­va, melancólic­a, e as pessoas diziam ‘venho aqui para dançar, não é para cortar os pulsos’. Estava a ficar um bocado desmotivad­o e a pensar que ia dedicar-me ao estudo.” E zás, apareceu o concurso de DJ do Lux.

O ano é 2009, novembro. “Eram mil candidatos. Passei em todas as fases e ganhei. Um dos prémios era seis meses de residência no Lux. Depois decidiram manter-me.”

Fradique não fez parte do júri, mas sabe porque é que Marco foi escolhido. “Percebeu-se que tinha uma coisa específica dele. Havia uns que se encaixavam mais no Lux mas não traziam nada de novo. Ele tem um lado de quase ingenuidad­e mas sabe conquistar as pessoas, levá-las a aceitar aquilo que tem para dar.”

Uma metáfora do que se passa

O Marco – é ainda Pedro Fradique a falar –“simboliza um bocado o que tu queres que se altere nesta situação que estamos a viver. É uma história bonita, louvável, a de como como está a viabilizar-se, uma metáfora das merdas que estão a acontecer – há que descobrir a chamuça que há em nós, não há nenhum desprimor. Mas por muito boas que sejam as chamuças, a música dele faz muito mais falta à humanidade. O mundo precisa é da música do Marco.” Mesmo se, admite, “ninguém sabe o que vai ser esta coisa dos DJ depois”. E dos clubes, dos bares, das discotecas, dos festivais. Do corpo a corpo, do inebriamen­to, da energia da tribo sintonizad­a no ritmo, no transe.

“O que é o trabalho de um DJ? Providenci­ar uma banda sonora tribal”, definiu Andrew Weatherall, o DJ, músico e produtor britânico que morreu em fevereiro de 2020, aos 56 anos, pouco depois de tocar no Lux a convite de Marco e imediatame­nte antes de a pandemia fechar o mundo, a começar pelas discotecas. “A música de dança é uma experiênci­a transcende­nte, e está connosco há 200 mil anos.”

Dessa transcendê­ncia faz parte estar com outros – dançar é bom, mas é em grupo que se sente o arrepio. Esse de que Switch fala: “Sabes quando há uma paragem na música e as pessoas estão à espera e depois rebenta? É como se houvesse um elevador no corpo, sentes a energia a subir, não sei se é o diafragma, se o que é. Tenho imensa saudade dessa sensação, de ter as pessoas na mão, conseguir pegar nelas e levá-las para aqui ou para ali. De me sentir embalado.” Algo de vampírico nisso, assumia Weatherall: “É o que sente um xamã que recebe energia das pessoas, um padre a sintonizar a energia da congregaçã­o.”

Quando essa missa de novo? Quando o depois? Quando a dança sem a qual, diz Botelho, não há vida? Switch hesita. “Está tudo a adiar. Por exemplo, tinha uma grande data em Barcelona em julho de 2020, mas já não se fala de 2021, já é 2022. Neste ano as coisas devem abrir cá no mesmo registo que no verão passado (de manhã e à tarde, sem dança), com tudo sempre a mudar, e as pessoas a terem de se adaptar. E não imagino que vá haver pistas tão cedo. Se podemos estar uns em cima dos outros lá para o fim do ano? Há dias em que tenho esperança. Outros em que nada faz sentido.”

Sim, confirma Pedro Fradique: “Há total consciênci­a de que não vai acontecer nada tão cedo. O sociólogo Nicholas Christakis diz que no pós-pandemia virão os novos loucos anos 20, como no pós-Primeira Guerra . Mas só lá para 2024.”

Que será de locais como o Lux, de todos os sítios da noite, da música e da dança, se tiverem de esperar até 2024? Que será de festivais como o Boom, adiado de 2020 para 2021 e que também não terá lugar neste ano? Que será de toda a gente que trabalha nesta área? Pedro Fradique suspira. “Dá-nos bem a ideia de que as coisas não estão sempre disponívei­s. Que podes não ter segunda oportunida­de.”

E podes não desistir. Podes, neste rio onde a margem está sempre a ficar mais longe, ser capaz, louva João Botelho, da humildade que faz os grandes: “Switch é suficiente­mente humilde para dizer ‘a única hipótese que tenho é fazer chamuças com a minha mãe’. E continuar a criar enquanto cozinha. Quando isto acabar, vai ter música para mostrar – não sei é onde.”

Não sabemos, nada se sabe. Mas vamos querer ouvir. E dançar, tanto.

“O Switch é humilde o suficiente para dizer ‘a única hipótese que tenho é fazer chamuças com a minha mãe’. E continuar a criar enquanto cozinha. Quando isto acabar ele vai ter música para mostrar.”

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Sério e concentrad­o como quase sempre quando toca, Marco na disco do Lux, onde não se dança desde março de 2020.
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Marco Antão, ou Switchdanc­e, de quem João Botelho diz ter “a humildade que faz os grandes”.

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