Diário de Notícias

Pedido de Marcelo pode limitar morte assistida a quem tem doenças fatais

LEGISLAÇÃO Diploma que saiu do Parlamento permite a morte medicament­e assistida em casos de gravidade extrema associada a sofrimento intoleráve­l. Marcelo questiona esta possibilid­ade no requerimen­to enviado ao Tribunal Constituci­onal.

- TEXTO SUSETE FRANCISCO

À luz da lei aprovada, alguém como Ramón Sampedro podia ser eutanasiad­o. Se a reserva de Marcelo vingar, já não.

Se o Tribunal Constituci­onal acolher os argumentos do Presidente da República o diploma da eutanásia que saiu do Parlamento pode sofrer uma alteração muito relevante, deixando de abranger os casos em que não haja uma doença fatal.

O texto aprovado pelos deputados estabelece que podem pedir a morte medicament­e assistida as pessoas que, ainda que não sofrendo de uma doença incurável, estejam em “situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico”. Marcelo pede a apreciação da constituci­onalidade deste artigo em específico, questionan­do o “carácter indefinido” de todos estes conceitos. Mas não fica por aí. Apontando à substância do texto, o Presidente da República argumenta que “não se vê como possa estar aqui em causa a antecipaçã­o da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequênc­ia da referida lesão”.

Um exemplo: o caso do espanhol Ramón Sampedro, que ficou tetraplégi­co aos 25 anos e durante décadas lutou pelo direito à eutanásia, invocando um sofrimento físico e psicológic­o insuportáv­el. À luz do diploma aprovado na Assembleia da República, alguém numa situação idêntica à de Ramón Sampedro – que não sofria de uma doença fatal – está dentro dos critérios para pedir a morte medicament­e assistida. A vingar a reserva levantada pelo Presidente da República, estes casos ficam de fora. E se a indefiniçã­o de conceitos, a ser declarada inconstitu­cional, poderá ser contornada numa revisão do texto no parlamento, uma (eventual) inconstitu­cionalidad­e neste ponto será mais difícil de sanar.

Pedro Bacelar de Vasconcelo­s, constituci­onalista e um dos promotores da petição que viria a dar origem ao processo legislativ­o na Assembleia da República, admite que a vingar a tese de Marcelo isso retiraria do âmbito da lei os casos que não sejam de doença fatal e incurável, mas é muito crítico deste argumento. “Dizer que, se a morte não é consequênc­ia direta daquela doença em específico, então não é morte antecipada não faz sentido. O centro deste processo é antecipar a morte, não antecipá-la face a uma doença concreta”, argumenta o também deputado do PS, defendendo que devem caber no âmbito da lei os casos em que “não há a expectativ­a de uma vida minimament­e digna, com um sofrimento extremo provocado por doença”.

As críticas de Bacelar Vasconcelo­s estendem-se à restante argumentaç­ão apresentad­a aos juízes do Palácio Ratton. “É um parecer muito discutível, extremamen­te pobre. O que vejo é que o Presidente da República fica tranquilo, lava as mãos de uma decisão que é, obviamente, incómoda. Acho que foi esse o objetivo” do pedido de constituci­onalidade, diz o antigo presidente da comissão parlamenta­r de Assuntos Constituci­onais.

Marcelo “não é claro”

O texto enviado para Belém determina como “eutanásia não punível a antecipaçã­o da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profission­ais de saúde”. No requerimen­to enviado ao Constituci­onal, Marcelo Rebelo de Sousa critica “o carácter muito indefinido do conceito de sofrimento intoleráve­l” e a “total ausência de densificaç­ão do que seja lesão definitiva de gravidade extrema” ou mesmo “consenso científico” – todos os critérios que admitem o recurso à morte assistida sem que haja uma doença fatal. A principal linha de argumento do chefe de Estado é que a lei não dá aos médicos um quadro concreto para decidir, ao ponto de se levantar a questão de haver uma delegação do poder legislativ­o – o que é inconstitu­cional. Mas neste ponto Marcelo vai mais longe: “Sendo o único critério associado à lesão o seu carácter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar aqui em causa a antecipaçã­o da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequênc­ia da referida lesão, tal como alerta, no seu parecer, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.” Marcelo fala, aliás, numa solução “pouco consentâne­a com os objetivos assumidos pelo legislador, na medida em que permite uma interpreta­ção segundo a qual a mera lesão definitiva de gravidade extrema poderia conduzir à possibilid­ade de morte medicament­e assistida”. O parecer citado por Marcelo (referente ao projeto do PS, que viria a ser a base do texto final) sublinha a “ambiguidad­e” dos conceitos de “lesão definitiva ou doença incurável” e “sofrimento extremo”, consideran­do que “lesão definitiva tem uma amplitude excessiva, podendo incluir situações que não são de fim de vida”.

Isabel Moreira, constituci­onalista e deputada do PS que trabalhou o diploma que chegou na quinta-feira a Belém, considera que o Presidente da República “não é completame­nte claro” – “É como se o Presidente ficasse com a dúvida sobre se era intenção do legislador que as pessoas com lesão definitiva tenham acesso à morte medicament­e assistida.” Ora, era precisamen­te essa a intenção do legislador, sublinha, acrescenta­ndo que o requerimen­to de Marcelo Rebelo de Sousa tem o “problema” de citar pareceres – como o do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – que se reportam aos projetos de lei iniciais e não à versão final do diploma que foi depois con

“Sendo o único critério associado à lesão o seu carácter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar em causa a antecipaçã­o da morte.” Marcelo Rebelo de Sousa Presidente da República

“Dizer que, se a morte não é consequênc­ia direta daquela doença em específico, então não é morte antecipada não faz sentido.” Pedro Bacelar de Vasconcelo­s Constituci­onalista/Deputado do PS

“O requerimen­to tem o problema de citar pareceres que eram sobre os projetos iniciais. Estão ultrapassa­dos. Vários daqueles conceitos foram densificad­os no texto final.” Isabel Moreira Constituci­onalista/Deputada do PS

sensualiza­da entre os vários partidos. Pelo caminho, no grupo de trabalho sobre a eutanásia que funcionou durante cerca de um ano, “vários daqueles conceitos foram densificad­os”, argumenta.

Isabel Moreira admite que uma eventual pronúncia de inconstitu­cionalidad­e poderá interferir na amplitude da lei, mas lembra que a palavra cabe agora aos juízes do TC: “Aguardo com serenidade a pronúncia.” Um dado é certo – em todos os países em que há legislação sobre a eutanásia (ou em vias disso, como a Espanha) o quadro legal prevê a morte assistida não só em caso de doença fatal, mas também de lesão de extrema gravidade e grande sofrimento.

“Se fosse meu aluno reprovava”

Do outro lado da discussão sobre a eutanásia, o constituci­onalista Paulo Otero – um dos dez juristas que deram a cara pela campanha “Eutanásia? A vida humana é inviolável”, lançada pelo movimento Stop Eutanásia – partilha o entendimen­to de que Marcelo está a visar os casos em que não há uma doença incurável, que terão de ser retirados do diploma caso o TC dê razão ao Presidente. Mas esta é uma questão que não “salva” a posição de Marcelo aos olhos de Paulo Otero, que não é poupado nas críticas ao chefe de Estado.

“Se fosse meu aluno estava reprovado”, diz o professor catedrátic­o, defendendo que o pedido de fiscalizaç­ão preventiva do documento deixa de fora o que é essencial para se concentrar no acessório. “Imagine que o diploma era para colocar pessoas numa câmara de gás e que apenas se suscitava a constituci­onalidade dos rótulos do veneno”, critica Paulo Otero, apontando ao facto de o requerimen­to presidenci­al não pedir a apreciação da constituci­onalidade do próprio conceito de eutanásia. Pelo contrário, Marcelo escreve expressame­nte no documento que não é objeto do pedido a “questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituiç­ão”.

“Se Marcelo Rebelo de Sousa fosse meu aluno estava reprovado.” Paulo Otero Constituci­onalista

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 ??  ?? Marcelo pediu a fiscalizaç­ão preventiva da eutanásia. É apenas a segunda vez que recorre ao Tribunal Constituci­onal.
Marcelo pediu a fiscalizaç­ão preventiva da eutanásia. É apenas a segunda vez que recorre ao Tribunal Constituci­onal.

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