Gordon Brown e Mark Lowcok
Enfrentar a crise da fome da covid
A covid-19 também expôs outra divisão educacional: dois terços das crianças em idade escolar no mundo não têm acesso à internet em casa, o que as impede de aprender online. Hoje, apenas 5% das crianças nos países de baixo rendimento têm esse acesso, em comparação com 90% nos países de alto rendimento.
Atualmente, 270 milhões de pessoas – o equivalente à população de Alemanha, Reino Unido, França e Itália em conjunto – estão à beira da fome. Esse número duplicou nos últimos 12 meses, e são as crianças que mais sofrem em todo o mundo.
Calcula-se que 11 milhões de crianças abaixo dos 5 anos enfrentem a fome extrema ou a inanição em 11 países de África, Caraíbas, Médio Oriente e Ásia. Destas, 168 mil morrerão de desnutrição até ao final de 2022, a menos que recebam apoio de emergência, e um total de 73 milhões de crianças em escolas primárias em 60 países de baixo rendimento sofrem de fome crónica.
A fome já estava a aumentar antes da covid-19, principalmente como resultado de guerras e conflitos, e as mudanças climáticas exacerbaram-na, mas os efeitos secundários da pandemia criaram uma crise global de fome.
Uma razão para isso é que a covid-19 furou a boia de salvação da escola. Mais de 1,6 mil milhões de crianças perderam tempo na sala de aula desde o início da pandemia e quase 200 milhões ainda não voltaram à escola.
Crises anteriores mostraram que o encerramento de escolas acarreta enormes custos sociais e económicos, incluindo aumentos nos números do casamento e do trabalho infantis. Algumas jovens acabam por pagar o preço final: as complicações na gravidez e no parto são a principal causa de morte de raparigas dos 15 aos 19 anos em países de baixo e médio rendimento. Em última análise, as crises revertem o progresso na garantia de que todas as meninas tenham acesso a uma educação de qualidade.
Além disso, as escolas fornecem a muitas crianças pobres a sua única refeição nutritiva do dia. O encerramento de escolas significa que milhões de crianças perderam a oportunidade não apenas de aprender, mas também de comer. As crianças perderam mais de 39 mil milhões de refeições escolares durante a crise. As mulheres e as meninas são geralmente as primeiras a perder refeições e representam mais de 70% das pessoas que sofrem de fome crónica.
Os danos causados por apenas algumas semanas de falta de nutrição podem marcar uma criança faminta por toda a vida, e a desnutrição pode paralisar o progresso económico de um país por uma geração. Portanto, levar as crianças de volta à escola, onde possam ser educadas e alimentadas, deve ser da máxima prioridade.
Com relativamente pouco dinheiro, o sistema humanitário internacional conseguiu muito. O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (WFP, em inglês), por exemplo, alimenta cerca de cem milhões de pessoas por ano. E quando a covid-19 interrompeu gravemente os serviços de companhias aéreas comerciais, a ONU criou um sistema de logística para transportar trabalhadores de saúde e humanitários e fornecimentos vitais, incluindo alimentos. Mas uma crise dessa escala requer um plano ambicioso que envolve mais do que apenas fornecer refeições escolares. As organizações humanitárias não podem fazer isso sozinhas.
Na sua cimeira de junho, as economias ricas do G7 deveriam estabelecer um plano de longo prazo para atender às crescentes necessidades globais de alimentos. O plano deve incluir disposições para ações preventivas: aumentar os stocks de alimentos, desenvolver o seguro como proteção e apoiar os agricultores e produtores de alimentos em países em desenvolvimento com investimentos de longo prazo para os ajudar a tornarem-se autossuficientes.
Os decisores políticos também devem adotar formas inovadoras de gerar financiamento, incluindo mecanismos baseados em garantias que podem maximizar o uso da ajuda ao desenvolvimento e do financiamento do setor privado, que estava no centro das propostas de Adis Abeba de 2015 para o financiamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Outra prioridade poderia ser uma parceria mais estreita entre a ONU e o Banco Mundial – a única organização totalmente global capaz de mobilizar recursos adicionais substanciais de forma sustentável.
Mas existe uma solução muito simples e de bom senso para a crise imediata: novo dinheiro internacional. Pelo menos 600 mil milhões de dólares em direitos especiais de saque (o ativo de reserva do Fundo Monetário Internacional) podem ser alocados aos países mais pobres. Líderes e credores podem concordar em até 80 mil milhões de dólares em alívio da dívida, com a condição de que o dinheiro vá para educação, saúde e nutrição, e o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento podem expandir rapidamente as subvenções e empréstimos.
Com cerca de 10 mil milhões neste ano, o mundo poderia evitar a fome no Iémen, no Sudão do Sul, no nordeste da Nigéria e no Sahel. E poderia prevenir a fome em massa na República Democrática do Congo, no Afeganistão, no Zimbabwe, na região de Tigré na Etiópia e noutros lugares vulneráveis.
Isso pode parecer muito dinheiro, mas é o equivalente a um dólar por mês de cada pessoa nas economias mais ricas do mundo e representa uma fração de 1% dos gastos de estímulo relacionados com a pandemia dos países ricos.
Precisamos de agir rapidamente. Isso significa dar subsídios antecipados ao WFP e a ONG importantes, como a Save the Children, para alimentar crianças famintas e suas famílias. Com apenas 31% das crianças refugiadas matriculadas no ensino secundário e apenas 27% das meninas, A Educação não Pode Esperar – que ajuda crianças deslocadas a irem à escola e arrecadou quase mil milhões de dólares na sua curta existência – precisa de ser totalmente financiada. Ao direcionar recursos adicionais para a educação, podemos fazer que 136 milhões de crianças em alguns dos países mais pobres e afetados por conflitos voltem à escola, e podemos ajudá-las a permanecer lá.
A covid-19 também expôs outra divisão educacional: dois terços das crianças em idade escolar no mundo não têm acesso à internet em casa, o que as impede de aprender online. Hoje, apenas 5% das crianças nos países de baixo rendimento têm esse acesso, em comparação com 90% nos países de alto rendimento. Um projeto liderado pela UNICEF para conectar o mundo poderia preencher essa lacuna digital.
O governo do Reino Unido comprometeu-se a desempenhar um papel de liderança global para colocar todas as crianças na escola e garantir que as meninas recebam 12 anos de educação. Mas não alcançaremos esse nobre objetivo a menos que a cimeira do G7 trate desse tema, além da segurança alimentar.
Repetidamente, a educação tem demonstrado o seu poder de transformar indivíduos, famílias e países inteiros. Mas a fome crónica pode ter consequências devastadoras: mortes cruéis e evitáveis, conflitos violentos e deslocamento em massa.
Ignorar o flagelo global da fome não é, portanto, uma opção. O que acontece nos lugares mais frágeis do mundo tem repercussões nos países mais estáveis.
A escolha que os líderes mundiais enfrentam é simples: agir agora para enfrentar a crise da fome ou pagar um preço muito mais alto depois. A ação imediata será mais barata e salvará mais vidas do que responder apenas depois de várias crises de fome se terem instalado e a falta de educação de uma geração ter cobrado um preço terrível.