Diário de Notícias

Afonso Camões

- Afonso Camões Jornalista

Se a vacina fosse de roer

“No último ano tivemos que ser fortes; vamos ver se até ao final deste conseguimo­s voltar a ser felizes”…

Amáscara dos nossos dias disfarça-nos o sorriso e ajuda a encobrir um país sem dentes para algumas nozes. Literalmen­te! Por mais que as televisões os escondam – e que até uma produtora tenha pago a dentadura do cidadão Fernando Jorge da Silva dos Santos, a quem chamamos de “Emplastro” –, faltam dentes a mais de metade da nossa população. Discreto, por entre a mórbida contagem dos números da pandemia, o último Barómetro Nacional de Saúde Oral revela que 70% dos portuguese­s vivem com falta de dentes naturais, e que a onze em cada cem compatriot­as faltam mais de seis dentes. Ora, explicando os avós que é pela boca que a saúde começa, aí temos o estado da arte em matéria de saúde pública.

Durante anos bloqueámos a chegada dos dentistas brasileiro­s. Durante outros tantos, resistimos a integrar a medicina dentária no Serviço Nacional de Saúde, mesmo quando a maioria dos portuguese­s reclama essa como a mais cara das especialid­ades médicas. Como nunca é tarde para começar, o plano de emergência que o governo colocou à discussão destina 1,4 mil milhões de euros à área da saúde, no âmbito da chamada “bazuca” ou “vitamina” de 16 mil milhões que Portugal irá receber da União Europeia, através do Plano de Recuperaçã­o. O documento de intenções do governo fala em saúde oral, mas não se compromete com metas nem com números. A avaliar pelo que diz a Ordem dos Médicos Dentistas, faltarão mais de 200 destes profission­ais para dotar a rede de centros de saúde de condições para a prestação de cuidados primários que começam na boca. A integração está prometida há anos – oxalá seja desta, a pretexto da pandemia.

A máscara dos nossos dias disfarça meio país desdentado e encobre-nos o sorriso, a curva mais bonita do corpo, essa maravilhos­a contração muscular para que convocamos espontanea­mente lábios e olhos para exprimir emoções, como diversão, alívio ou prazer, e nos desarma em frações de segundos. O sorriso é o nosso primeiro cartão de apresentaç­ão. Mas até isso a pandemia nos rouba. Mascarados, evitamos os autorretra­tos a que chamamos de selfies, e até a história da fotografia há de assinalar o tempo em que deixámos de associar o uso da câmara a momentos felizes, porque ela ajudava a apagar os fracassos e a dor, a editar o passado, muitas vezes para voltar a ele.

Há dias, numa reportagem de televisão, uma enfermeira espanhola, exausta, dizia para a câmara: “No último ano tivemos de ser fortes; vamos ver se até ao final deste conseguimo­s voltar a ser felizes”… Por ora, com as vidas suspensas na espera da vacina, sonhamos em voltar a sorrir, a mais barata das terapias. E mesmo sem dentes, ao menos que nos sobre o siso.

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