A Espanha em dívida com os jornais, o povo e... o rei
Ochapéu tricórnio da Guarda Civil e o bigode a lembrar Cantinflas do coronel António Tejero podem, a 40 anos de distância, dar a ideia de que a tentativa de golpe de 23 de fevereiro de 1981 foi trágico-cómica, que nunca a democracia esteve ameaçada naquela data que os espanhóis sintetizam como 23-F. Mas se olharmos bem para as fotografias que imortalizaram o momento, Tejero tem uma pistola na mão, está rodeado de guardas civis com metralhadoras, e o terror nas Cortes é tal que os deputados estão no chão, obedientes às ordens carregadas de palavrões. Há exceções, uns valentes que ignoram os gritos: Adolfo Suárez, o chefe do governo prestes a ser substituído, o ministro da Defesa, o general Gutiérrez Mellado, e o líder comunista, Santiago Carrillo, que continua a fumar, talvez certo de que seria fuzilado desse por onde desse, tamanho era o ódio que lhe destinavam os franquistas desde a Guerra Civil de 1936-1939.
Não faltam livros a contar estas horas dramáticas de Espanha, mas recomendo Anatomia de Um Instante, documento extraordinário escrito pelo romancista Javier Cercas, mais de 400 páginas de rigor histórico e leitura deliciosa. E para uma síntese do 23-F sugiro outro romancista, Arturo Pérez-Reverte, que antes de se dedicar às novelas históricas foi repórter de guerra e que há pouco mais de um ano publicou Uma História de Espanha pouco convencional e, na qual, frontal, elogia a coragem do trio Suárez, Gutiérrez Mellado e Carrillo (já todos mortos), mas identifica como heróis daquele dia três outras personagens: o rei Juan Carlos, os jornais e o povo espanhol.
O mérito dos jornais não se põe em causa hoje, pois o El País e o Diário 16 imprimiram edições especiais a apelar à defesa da democracia; também a reação nas ruas contra os saudosistas do franquismo é uma memória que honra os espanhóis; mas Juan Carlos, esse, tornou-se um nome incómodo, desconfortável para os monárquicos e até para os muitos republicanos que se orgulhavam de dizer ser juancarlistas. Tudo por causa dos escândalos, sobretudo os ligados a uma vida sumptuosa paga por amigos de vária ordem, incluindo cabeças coroadas do mundo árabe. Uma caçada a elefantes em África quando um quarto dos espanhóis enfrentava o desemprego foi o ponto de não retorno, que levou primeiro à abdicação para o filho, FelipeVI, e uns anos depois a partida para o Médio Oriente, onde continuará a viver.
A Espanha democrática é um grande caso de sucesso apesar do desafio hoje dos independentistas catalães. E esse sucesso deve muito a Juan Carlos, o príncipe Borbón que Francisco Franco escolheu para perpetuar a sua obra, mas que após a morte do ditador, em 1975, se tornou um dos promotores da transição para a democracia, que a Constituição de 1978 tornou definitiva, apesar de Tejero, às ordens do general Milans del Bosch, a tentar reverter. Ora, no 23-F o monarca confirmou o seu lugar na história. Como escreveu Pérez-Reverte, “tudo esteve em perigo até que o rei Juan Carlos, os seus assessores e as altas chefias do exército pararam o golpe, mantendo a disciplina militar”.
Ao contrário da fotografia de Tejero no Congresso dos deputados, a de Juan Carlos de farda nos ecrãs da TVE, a partir do palácio, a ordenar o regresso aos quartéis, tem um peso histórico, uma solenidade, que é justo relembrar. Os povos com histórias longas sabem bem como estas nunca são simples.