Fernanda Câncio
Minorias tudo bem mas quietas e caladinhas
U “ma coisa é a tolerância para com as minorias e outra, bem diferente, a promoção das respetivas ideias: os judeus não são nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite. Não estão destinados a crescer e expandir-se até os não judeus serem, eles próprios, uma minoria. E nas sociedades democráticas são as minorias que são toleradas pela maioria – não o contrário. (...) A verdade – que o chamado lobby judeu gosta de ignorar – é que os judeus não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos media.”
Imagine que João Caupers, o novo presidente do Tribunal Constitucional, tinha escrito isto em 2010 e era agora revelado. Veríamos um exército de defensores da “liberdade de expressão” a acusar de “censura”, “inquisição” e até “tentativa de homicídio” quem se chocasse e exigisse explicações? Duvidoso. Mas Caupers não escreveu sobre judeus, escreveu sobre homossexuais - logo, é “direito de opinião”.
O truque é velho, tão velho como o holocausto: substituir em declarações discriminatórias a categoria de pessoas atingidas pela dos judeus, de modo a “iluminar” a discriminação. E aquilo que assim se lê é – lamento -, algo que não se estranharia encontrar num panfleto antissemita de 1930: os judeus descritos como auto-proclamada e conspirativa elite, excessivamente poderosa para o seu diminuto número, que quer dominar o mundo, submetendo ou convertendo os não-judeus.
Virá, claro, quem se escandalize: não temos seis milhões de homossexuais metodicamente dizimados pelo nazismo. Temos só homossexuais assassinados e executados por serem homossexuais ao longo de toda a história, incluindo pelos nazis. Temos países onde ser homossexual é ainda hoje punido com a morte. E neste mesmo país tivemos até 2007 leis - declaradas inconstitucionais pelo TC - que criminalizavam relações homossexuais; tivemos discriminações legais como a proibição do casamento até 2010 e de adoção por casais do mesmo sexo até 2016. Temos ainda muita gente a defender que a homossexualidade é uma doença e uma aberração e que está certo, é imperativo, os homossexuais serem discriminados.
É por tudo isso que a proibição da discriminação em função da orientação sexual foi colocada em 2004 na Constituição: porque há discriminação, disseminada, bem viva e virulenta, e tem de ser ativamente contrariada.
Como? Falando de homossexualidade, dizendo “eu sou homossexual”, afirmando que ser homossexual e ser heterossexual é igual, denunciando e punindo discriminações.
Quem encara este combate como “promoção” não admite que aquilo que vê como “natural” – a heterossexualidade – esteja no mesmo plano do que não acha “normal”. Não admite que a minoria “anormal” ou “inferior” exija os mesmos direitos, a mesma visibilidade e voz, a mesma “naturalidade” da maioria. Tem medo que “se espalhe”.
É isso que quer dizer aquela citação de Caupers: temos um presidente do TC que não admite que os membros de uma minoria tenham os mesmos direitos que os de uma maioria; acha que a minoria tem de se conformar com ser “tolerada”; tem de estar calada, quieta e invisível, não incomodar.
E sim, isso é mesmo um grande problema. E sim, as declarações de Caupers são muito ofensivas e contrárias à ideia de dignidade plasmada na Constituição. Percebo que haja muita gente a não o perceber: pensa o mesmo. Ou não pensa lá muito.