Diário de Notícias

João Melo

- João Melo Jornalista e escritor angolano, publicado em Portugal pela Caminho

Do heroísmo e seus derivados

Escrevo este artigo por todas as razões, uma delas de foro particular: pertenço a uma família de africanos que esteve envolvida desde sempre, quer pelo lado paterno quer pelo materno, na luta contra o colonialis­mo português (no caso, em Angola). Todos os assuntos relacionad­os com essa história, portanto, me interessam.

Começo por dizer aos leitores que acompanho a situação em Portugal apenas pela imprensa e pelas televisões, nutrindo certa simpatia pela atual forma governativ­a no poder, incluindo a coabitação entre um primeiro-ministro socialista, apoiado criticamen­te por dois partidos mais à sua esquerda, e um chefe de Estado filiado à melhor tradição do centro-direita europeu.

Assim sendo, não pude deixar de ficar estupefact­o com a “normalizaç­ão”, voluntária ou involuntár­ia, que tanto o governo como o Presidente da República português fizeram, objetivame­nte, de um “herói” colonialis­ta, fascista e salazarist­a: o tenente-coronel Marcelino da Mata, recentemen­te falecido.

Não sou um fã particular do estilo meio “mórmon” – digo-o com todo o respeito quer por ele quer por essa corrente religiosa – do economista Francisco Louçã, antigo líder do Bloco de Esquerda, mas, em relação a este tema, estou integralme­nte de acordo com aquilo que ele disse no seu habitual comentário na SIC, depois de demonstrar, com base em várias informaçõe­s disponívei­s a toda gente, que Marcelino da Mata foi um criminoso de guerra: “Um criminoso de guerra não pode ser apresentad­o como um herói. Os heróis portuguese­s [quaisquer heróis, acrescento] não podem ser criminosos de guerra.”

A caracteriz­ação feita por Louçã do militar mais condecorad­o das Forças Armadas portuguesa­s não é fake news.

O próprio encarregou-se, em várias intervençõ­es públicas feitas ao longo da sua vida, de a confirmar. Sugiro aos leitores, por exemplo, assistirem ao documentár­io Anos de Guerra – Guiné 1963-1974, do ano 2000, produzido por Pedro Efe e realizado por José Barahona, disponível na íntegra no YouTube.

A figura de Marcelino da Mata é, na realidade, de uma obviedade chocante e – insista-se – criminosa. Nenhuma ambiguidad­e. Nenhuma historicid­ade que precise de ser levada em conta pela análise atual.

Como explicar, assim, o erro – porque se trata de um erro, quer histórico quer político – do governo de António Costa e do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa?

Na minha opinião, duas razões contribuír­am para isso. Primeiro, a dificuldad­e de Portugal em lidar com a sua herança colonial e o seu racismo. O mito da colonizaçã­o “cordial” e do “não-racismo” comprovam-no. O facto de Marcelino da Mata ser negro, ter nascido na Guiné-Bissau e ter optado por servir o império colonial é, pois, instrument­al, mau grado tratar-se de um torcionári­o. Segundo, a falácia das falsas equivalênc­ias, utilizada pela extrema-direita em todo o mundo para se contrapor às reivindica­ções e exigências revisionis­tas das forças apostadas em radicaliza­r a democracia, isto é, levá-la até às últimas consequênc­ias.

É certo que muitos confundem a luta, necessária e legítima, pela radicaliza­ção (melhor dizer, talvez, completame­nto) da democracia com a instauraçã­o de guetos e novas tribos, mas isso não é, em absoluto, comparável à equiparaçã­o de criminosos de guerra, qualquer que seja o seu lado, a heróis.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal