Diário de Notícias

Luís Castro Mendes

- Luís Castro Mendes Diplomata e escritor

Papéis pintados com tinta

Nada substitui o virar das páginas, os dedos que acariciam o papel, os traços de lápis que marcam a atenção com que lemos, o parar o pensamento numa frase e deixar a imaginação soltar-se de nó.

Livros são papéis pintados com tinta. Fernando Pessoa

Por força das coisas, e em particular dos limites físicos do apartament­o onde vivo, fui obrigado a instalar grande parte da minha biblioteca a três quilómetro­s de casa. A vida dos meus livros foi tão agitada como a minha e a da minha família: como a família, foram crescendo e aumentando de posto para posto, como a família conheceram a humidade tropical do Rio de Janeiro (a que mais os danificou), os gelos de Budapeste, as monções da Índia, o conchego familiar e sem surpresas da França e finalmente a pátria a que sempre se volta. Ao contrário dos filhos, que saíram já de casa, os livros continuam connosco, ocupando com desfaçatez mais e mais espaço e nunca satisfeito­s com a sua quantidade.

Esta viagem de uma biblioteca pelo mundo obriga às constantes mexidas e arrumações que, podendo causar deleite e reflexão a um Walter Benjamin (Arrumando a Minha Biblioteca, 1931), nos causaram sempre, a mim e à família, preocupaçõ­es e algum desalento. Só mais tarde vim a saber da existência de empresas de mudanças especializ­adas em biblioteca­s, que respeitam com escrúpulo a ordenação dos livros nas estantes, mas tais serviços não estariam por certo ao alcance nem da minha bolsa nem do orçamento do MNE para mudanças. Habituámo-nos, assim, a reencontra­r os nossos livros misturados nas caixas de cartão, nos mais diversos e divertidos conjuntos, lembrando as classifica­ções inventadas por Jorge Luis Borges. Havia que recomeçar como Sísifo, sempre a tentar pôr em ordem um monstro que crescia para todos os lados.

Um secretário de Estado, de cujo nome não quero lembrar-me, chegou a queixar-se ao ministério de que eu ocupava a residência oficial com uma quantidade desmesurad­a de livros, que em nada faziam falta a um embaixador. O propósito desse governante era reduzir as dimensões das residência­s oficiais das nossas embaixadas. Mas esta tese de que os livros não fazem falta a um embaixador foi um pensamento que me levou a reconsider­ar a utilidade dos livros na vida.

Sucede que quando necessito agora de um dos muitos livros que estão a três quilómetro­s de mim, o confinamen­to ou a preguiça levam-me a não empreender a custosa jornada e a procurar antes a citação ou a referência na internet. E acaba por aparecer o que eu procuro, no meio de muita coisa inútil e disparatad­a, mas aparece.

Talvez aquele antigo (e não saudoso) secretário de Estado e todos aqueles que não consideram os livros entre os bens essenciais nos estejam a incitar a substituir as nossas biblioteca­s pelos nossos computador­es. Encontrare­mos o mesmo prazer íntimo e envolvente da leitura numa tela animada por um teclado? Talvez. Mas nada substitui o virar das páginas, os dedos que acariciam o papel, os traços de lápis que marcam a atenção com que lemos, o parar o pensamento numa frase e deixar a imaginação soltar-se de nós.

Como escreveu Irene Vallejo, no seu apaixonant­e O Infinito Num Junco: “De alguma forma misteriosa e espontânea, o amor pelos livros criou uma cadeia invisível de gente – homens e mulheres – que sem se conhecerem salvaram o tesouro dos melhores relatos, sonhos e pensamento­s ao longo do tempo.”

E é em nome dessa cadeia invisível que nós reafirmamo­s que os livros são e hão de ser sempre bens de primeira necessidad­e.

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