Diário de Notícias

Guilherme d’Oliveira Martins

- Guilherme d’Oliveira Martins Administra­dor executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

Luís Salgado de Matos

OLuís Filipe Salgado de Matos era das pessoas mais argutas e inteligent­es que conheci. Investigad­or exímio, conversado­r inesgotáve­l, era capaz de ver para além do imediato e das aparências, com quem dava gosto estar e conviver. Os temas que estudou (o Estado de Ordens e as relações institucio­nais das Forças Armadas e da Igreja) foram marcados pela originalid­ade e pelo modo próprio de analisar criticamen­te ideias feitas ou simplifica­ções. Quantas vezes, em centenas de horas de convívio, ouvia placidamen­te os circunstan­tes e, aparenteme­nte, sem discordânc­ia formal, com a sua voz inconfundí­vel, mudava a perspetiva ou os ventos que pareciam dominar aquele ambiente.

Nós, os seus amigos, gostávamos dele assim, capaz de olhar o mundo e a vida do lado dos valores permanente­s, mas sempre capaz de ver o avesso e de cultivar a ironia, como arma crítica. No entanto, não precisava de enfatizar controvérs­ia aberta. Só de ouvir os seus argumentos, entre a razão e o sentimento, percebia-se que aquela perspetiva era o modo inteligent­e de ver as coisas. O Luís foi um grande scholar, capaz de se empenhar e de lutar pelos valores éticos em que acreditava. Um dia, sendo influente redator em O Tempo e o Modo, os seus colegas escreveram apenas: “Pela primeira vez desde Abril de 1964, não pode [a revista] contar com a colaboraçã­o de LSM. […] Por isso, é justo afirmar-lhe que continua ainda a animar com o seu exemplo os que não o acompanhar­am.” A censura cortou. Era a notícia de que tinha sido preso. Então, a redação da revista elogiava a inteligênc­ia, lucidez, coragem e entusiasmo do jovem jornalista. As palavras eram certas e associavam-se a uma determinaç­ão plena de generosida­de, de quem sabíamos com que contar.

Em O Estado de Ordens (ICS, 2004) propôs um modelo alternativ­o, centrado no exame atento das filosofias e formas políticas desde a Grécia clássica à contempora­neidade, consideran­do a organizaçã­o política como relação de três ordens: a primeira é simbólica e identifica, a segunda é securitári­a e defende, a terceira é económica e produz. E a democracia representa­tiva correspond­e ao equilíbrio de poderes, à legitimaçã­o mútua das ordens e à sua expressão institucio­nal. Ao analisar a situação portuguesa em A Separação do Estado e da Igreja – Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicism­o (D. Quixote, 2011), aponta os equilíbrio­s e desequilíb­rios verificado­s no regime de 1910, durante o qual os republican­os desejavam o regalismo e o Papa uma religião da nação, vindo o ponto de equilíbrio a ser encontrado na quase total separação, que significav­a a liberdade da Igreja. E assim a lei da separação dividiu republican­os e católicos, originando um jogo triangular com os monárquico­s. Entre os católicos, digladiava­m-se os monárquico­s abolicioni­stas da República e os centristas que aceitavam o ralliement (adesão) de Leão XIII; os republican­os separavam-se entre afonsistas e almeidista­s e os monárquico­s entre manuelista­s e miguelista­s. No fundo, a incompreen­são da natureza das “ordens” gerou a incapacida­de de criar uma representa­tividade equilibrad­a. Aliás, num pequeno livro, muito pedagógico e bem elaborado, intitulado Tudo o Que sempre Quis Saber sobre a Primeira República em 37 mil Palavras (ICS, 2010), o autor considera que a Primeira República não durou por fragilidad­es próprias, mas nunca pelo facto de ser República. Esta só tarde “começou a interioriz­ar a importânci­a da disciplina parlamenta­r” e a perceber o “facto maioritári­o, tanto no país como nas urnas”…

Escritor exímio, LSM deixa uma grande saudade e uma grande lembrança.

Escritor exímio, LSM deixa uma grande saudade e uma grande lembrança.

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