O dia em que Espanha se uniu em torno do rei Juan Carlos
O golpe militar do qual nunca se soube qual era o objetivo último nem o seu principal mandante fez estremecer a frágil democracia espanhola, ainda a libertar-se do peso do franquismo. Juan Carlos, para alguns responsável pelo golpe, foi determinante em apelar para a ordem constitucional e ordenar o fim das operações militares.
O “golpe surpreendeu-nos”, recorda o embaixador Luís Filipe Castro Mendes, à época secretário na embaixada de Portugal em Madrid. O clima era de desencanto, com uma Espanha a atravessar uma crise política, agravada pelo terrorismo da ETA. Há meses que circulavam na capital – “a grande cloaca”, segundo as palavras do primeiro-ministro em fim de funções, Adolfo Suárez – conspirações, planos e rumores que apontavam para a hipótese de um governo de unidade nacional presidido por um militar. Na véspera, o jornal de extrema-direita El Alcazar sinaliza na primeira página, de forma cifrada, o golpe (algo só decifrado por quem já o esperava). Ainda assim, poucos esperavam o que aconteceu, como foi o caso dos funcionários da representação portuguesa.
No dia 23 de fevereiro de 1981, os deputados espanhóis estavam a ser chamados individualmente para darem o voto favorável ou desfavorável ao novo governo, de Leopoldo Calvo Sotelo, da UCD, o mesmo partido de Suárez. Às 18.23, perante o ruído vindo do exterior, o secretário do Congresso interrompe a chamada e questiona: “O que é que se passa?”. Um funcionário entra no hemiciclo, mas o motivo para a agitação vem de tricórnio na cabeça e respetivo traje da Guarda Civil, bigode farto na cara, e arma empunhada. É o tenente-coronel Antonio Tejero, homem da extrema-direita dado a golpes. Sobe as escadas da presidência e grita “Toda a gente quieta!”. Perante a tentativa de subversão da ordem democrática pela força das armas, o vice-primeiro-ministro Manuel Gutiérrez Mellado, general, salta do seu lugar, ao lado de Suárez, e tenta pôr na ordem os militares golpistas. A reação de Tejero poderá ter ditado o insucesso do golpe. Mellado é empurrado pela soldadesca e irrompe uma metralhada. O general não se verga e o próprio Tejero desce as escadas e tenta, sem sucesso, derrubar o militar, então com 66 anos, ar magro e frágil. Acaba por se sentar ao lado de Suárez. São os homens do governo cessante que não se vergam à intimidação, a par do secretário-geral dos comunistas, sentado do outro lado do hemiciclo, Santiago Carrillo. A dignidade e coragem prevaleceu naquele momento perante uns soldados desprovidos de organização e disciplina e que à mínima desataram aos tiros para o ar.
O nervoso Tejero e os seus 200 subordinados sequestraram os deputados e o governo em funções, e quando Adolfo Suárez se levantou para tirar satisfações foi levado e isolado num gabinete, enquanto os golpistas anunciavam estar à espera de um general. Em Valência , o general Jaime Milans del Bosch declara estado de exceção, e uma hora depois da entrada de Tejero no Congresso dos Deputados o general ocupa Valência em apoio ao golpe. O general Alfonso Armada tenta reunir-se com o rei Juan Carlos, mas o seu sucessor, Sabino Fernández Campo, não deixa. Armada acaba por se dirigir por sua iniciativa ao parlamento e tenta convencer Tejero a depor armas em troca de um governo de unidade nacional composto por elementos de todos os partidos, incluindo o comunista (que havia sido legalizado por Suárez para escândalo dos militares e da extrema-direita), e chefiado pelo próprio Armada. Tejero recusou. Já perto da 1.00 de dia 24, um discurso do rei Juan Carlos transmitido na TV dá o sinal inequívoco de que estava do lado da democracia e da constitucionalidade. Milans del Bosch acata as ordens do monarca, mas Tejero só iria render-se ao meio-dia.
Muitos livros se escreveram sobre estas horas decisivas para o futuro de Espanha, entre os quais se destacam o da jornalista Pilar Urbano, logo em 1982, Con la venia...
yo indagué el 23-F, e Anatomia de um Instante, do escritor Javier Cercas, em 2009, resultado de uma investigação de três anos.
Um e outro apontam para a hipótese de o golpe ter sido urdido com o beneplácito ou com o conhecimento do rei por parte de Alfonso Armada, que morreu sem se
Os dois livros de referência sobre o 23 de fevereiro apontam para a hipótese de o o golpe ter sido urdido com o beneplácito ou o conhecimento de Juan Carlos.
pronunciar em público sobre o tema. “Há de facto várias teorias e tudo assenta em quem era o general de que Tejero estava à espera, se era o general Milan del Bosch, se era o general Armada”, diz o embaixador Luís Filipe Castro Mendes. “O general Armada era um homem de grande fidelidade ao rei e teria preparado uma demonstração de força, para se chegar ao tal governo de unidade nacional, porque se chegou a dizer que os socialistas tinham sabido ou sido contactados, mas nada disto está comprovado”, continua.
Certo é que quando Juan Carlos fala o golpe fica sem efeito. “O rei sai altamente prestigiado e fortalecido, é um enorme plebiscito para a monarquia. Há quem diga que a rainha Sofia teve um papel decisivo, porque tinha a experiência do golpe de estado da grécia e sabia que militares e monarquia não funciona. Ou, como sugere Pilar Urbano, o rei viu que tinha tudo dado para o torto, militares a disparar sobre os deputados não era a melhor maneira de começar um processo para começar um governo de unidade nacional.” Em conclusão: “Seja o que for que se tenha passado antes, orei deve um papel determinante na contenção do golpe,”
Juan Carlos e a monarquia ganham popularidade e o período de transição acaba por ser um sucesso, apesar da violência continuada da ETA. “Nessa altura já se falava das aventuras amorosas do rei e há uma frase famosa do socialista Pablo Castellanos: ‘A única noite que me interessa saber dor eiéa de 23 de fevereiro’, lembra Castro Mendes, que hoje vê como a “monarquia já não é respeitada”, “vê-se Juan Carlos a caçar elefantes e outras coisas”, alusão à investigação a que está sujeito devido a suspeitas de corrupção.