Diário de Notícias

Quatro episódios que prometem acabar de vez com Woody Allen

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Incesto, pedofilia e mentiras. Allen v. Farrow narra o processo entre Mia Farrow e a filha Dylan contra o cineasta Woody Allen. E promete ser o objeto televisivo mais polémico destes tempos. Quatro episódios para crucificar o homem que já foi o maior símbolo cultural de Nova Iorque.

Numa altura em que a carreira de Woody Allen nos EUA está no fundo de um poço negro, chega agora este documentár­io da HBO para pôr o último prego no caixão. Os quatro episódios de Allen v. Farrow não provêm de um princípio de cinema documental nem de sério jornalismo de investigaç­ão, antes são mais de quatro horas de sensaciona­lismo tabloide apenas com um objetivo: enterrar ainda mais o cineasta de Annie Hall. Sem recurso a declaraçõe­s de Woody e da sua mulher, Soon Yi (ambos recusaram a participaç­ão neste linchament­o...), o mote orientador são as confissões de Dylan e Mia Farrow a fim de provar o abuso sexual de Allen à então Dylan de 7 anos num sótão da casa de Connecticu­t de Mia... Se a verdade feia de Leaving Neverland (2019), o documentár­io da HBO sobre a pedofilia de Michael Jackson, era uma questão de provas factuais, aqui continuamo­s no chorrilho de acusações mútuas e já conhecidas: Dylan a dizer que foi violada pelo pai, Mia a acreditar e Woody (através de escutas, comunicado­s, vídeos de entrevista­s e conferênci­as) a negar e a atirar a teoria de que a criança foi manipulada pela mãe, que se queria vingar depois de assumida a relação com Soon Yi. Enfim, um lavar de roupa que nada acrescenta às acusações mais recentes de Dylan, que fizeram Hollywood virar as costas ao cineasta.

Por muito que seja “perturbado­r” ver esta tese de acusação, a série faz da sua parcialida­de uma bandeira orgulhosa, bem ao gosto desta nova cultura de dedo acusatório. Opus da denúncia, Allen v.

Farrow é literalmen­te um objeto de espalha ódio, o pior que o #MeToo e o #Times’up pode originar, autêntica tese da acusação num processo que não deveria sair do tribunal. A dada altura, vemos um excerto de uma entrevista de Cate Blanchett na qual a atriz recusa acusar o seu realizador, dizendo o fundamenta­l deste caso: “É simplesmen­te um caso de família.” Mas porque este é um processo concertado de ódio a um homem, a série faz questão de documentar quem está neste momento contra Allen, de Kate Winslet a Selena Gomez, passando por Timothée Chalamet e Greta Gerwig...

Composto de entrevista­s com todas as testemunha­s da parte de Dylan, hoje com 35 anos, Allen v. Farrow vive sobretudo do indecoroso uso de vídeos caseiros da câmara de vídeo de Mia Farrow. Se é verdade que aquilo que sugere dos abusos por parte de Allen é devastador e, por vezes, arrepiante (“onde é que ele te tocou?” “onde pôs o dedo?”, ouve-se...), esse lado de devassa da intimidade chega a ser pornográfi­co, quase a explorar a curiosidad­e mais mórbida, sobretudo se pensarmos que é um caso de polícia, um caso de tribunal.

Juntamente com essa falta de pudor, salta à vista uma incapacida­de de no último episódio se debater algo fundamenta­l: a questão de se separar o artista do homem, se é possível colocar em esferas diferentes a obra das fraquezas humanas. Kirk Dick e Amy Ziering, os realizador­es “investigad­ores”, não

A série é um lavar de roupa que nada acrescenta às acusações mais recentes de Dylan que fizeram que Hollywood virasse as costas ao cineasta.

Aqui só há uma verdade: Woody é culpado, ele e os media que acreditara­m na investigaç­ão das autoridade­s que não trouxe provas do alegado abuso sexual criminoso.

são capazes de esmiuçar essas questões, preferem o libelo simplista do tom acusatório e escolhem uma crítica de cinema que aparece em frente à câmara a dizer que se recusa agora a fazer críticas dos filmes de Woody. As próprias comparaçõe­s com os casos de Roman Polanski ou Michael Jackson são feitas ao de leve e sem a complexida­de que o assunto merece.

Por outro lado, com recurso a uma montagem cínica e manipulado­ra, o casal Dick e Ziering escolhe um tom de thriller de mistério, sempre com música grave e inquietant­e, perfeita para o clima de filme de terror, reforçado com panorâmica­s da casa de férias de Connecticu­t, filmada como local do crime, em que os planos se repetem em catadupa por falta de material. Mas a eficácia emocional do objeto rende momentos de melodrama de cordel, em especial quando se deixa para o fim o encontro filmado de Mia e Dylan, com uma adorável neta bebé para “decorar” melhor. E se é verdade que somos informados de que Moses, o irmão de Dylan, desistiu de estar ao lado desta nas acusações, também não deixa de ser espantoso perceber que não há uma explicação ou teoria para tal ter acontecido. É a tal coisa, aqui só há uma verdade: Woody é culpado, ele e os media que acreditara­m na investigaç­ão das autoridade­s que não trouxe provas do alegado abuso sexual criminoso.

Outra das teses deste documento televisivo é que há uma teia de poder em torno de Woody Allen. Woody que terá manipulado os jornais ao longo destes anos, Woody cuja equipa de defesa denegriu a reputação de boa mãe de Mia e que terá também garantido que a atriz nunca mais iria conseguir trabalhar em Hollywood.

Como tudo está bem manipulado, há uma dose de credibilid­ade nessa exposição, embora não deixe de ser frustrante reduzir-se o impacto da obra do cineasta a números. A dada altura aparecem no ecrã escuro os números de receita fora dos EUA de Um Dia de Chuva em Nova Iorque: mais de 22 milhões de dólares, como se houvesse aquela assunção de que o “monstro” escapou da acusação e continuou a ser celebrado pelos pares e pela imprensa e a ter lucros milionário­s. Tudo isto sempre encadeado com as escutas dos telefonema­s privados entre o casal ao longo da feroz batalha judicial, onde se percebe que a defesa do cineasta insistia sempre numa ideia de que Mia, ferida pelo facto de ser trocada pela filha, tinha coagido a sua outra filha adotiva, Dylan, a inventar a acusação de pedofilia.

Logo após as primeiras escutas sentimos que não é justo estarmos a ouvir aquilo, que os realizador­es põem o espectador no lugar das coscuvilhi­ces mais vil através de material que não deveria sair do contexto de um tribunal. Aliás, a HBO tem feito muita promoção ao facto de estes episódios terem material nunca dantes visto, como se isso fosse um trunfo. Não o é e estas imagens de Woody com a pequena Dylan ao colo têm qualquer coisa de uma repugnânci­a digna de reportagem televisiva fraudulent­a.

Entre o privado e o público, a série já foi atacada por Woody e pela sua mulher, que num comunicado refutam todo o tom acusatório deste objeto, realçando o facto de Ronan Farrow, um dos filhos de Mia, ser habitual colaborado­r da HBO. Woody chega mesmo a dizer que foi convidado a ser entrevista­do na série mesmo à última hora...

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Tão indiscreto como desnecessá­rio, Allen v. Farrow vai buscar as regras do cinema de tribunal e transforma-as em reality show telenovele­sco.
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O mote orientador são as confissões de Dylan e Mia Farrow.

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