Diário de Notícias

A contínua falsa partida do Iraque e a adiada saída dos Estados Unidos

- TEXTO CÉSAR AVÓ

Há 30 anos, os Estados Unidos davam início à invasão terrestre do Iraque, em resposta à aventura militar de Saddam Hussein no Koweit. O ditador é passado, a presença da NATO é presente e futuro, mas o país continua a enfrentar a desestabil­ização das mílicias pró-iranianas e o perigo do recrudesci­mento do Estado Islâmico no norte do território.

Aresposta dos aliados começara um mês antes, com uma campanha aérea a visar alvos militares e infraestru­turas iraquianas, mas a invasão terrestre, a partir de 24 de fevereiro de 1991, foi decisiva e em questão de horas ditou o fim do conflito e restaurou as fronteiras entre o Iraque e o Koweit. Bagdad pagou com dezenas de milhares de mortos e as sanções impostas pelas Nações Unidas mantiveram-se depois da Guerra do Golfo, sendo aliviadas em parte a partir de 1995 com o programa petróleo por alimentos. Em 1990, o Iraque encontrava-se em grave crise económica, saído de uma guerra de oito anos com o vizinho Irão. Em 2021, depois da Operação Tempestade no Deserto e da invasão anglo-americana de 2003 que dita o fim de Saddam Hussein, bem como das instituiçõ­es que estavam associadas ao regime, e do regresso em força dos EUA para expulsar o Estado Islâmico, o Iraque continua mergulhado em grave crise. A esperança trazida pela nova liderança e a visita do Papa Francisco entre 5 e 8 de março não conseguem contrabala­nçar o peso de uma nova onda de ataques, o aparente reagrupame­nto do autodenomi­nado Estado Islâmico, a explosão da pandemia, e um sistema político construído para aplacar, ou acirrar, as divisões sectárias – um sistema que nem uma data para as eleições consegue fixar.

Em termos políticos, o Iraque continua bloqueado, com as divisões em linhas étnicas e sectárias (presidente curdo, primeiro-ministro xiita e presidente da assembleia sunita), nacionalis­ta e religiosa, pelo que a constituiç­ão de um governo é um quebra-cabeças. Junte-se a corrupção e as reformas estruturai­s por fazer e as revoltas populares, como a que se deu em 2019, a exigir o fim do regime, não pode surpreende­r. Mustafa al-Kadhimi, primeiro-ministro desde maio do ano passado, tem credenciai­s de homem impoluto e no seu currículo tem a reforma do serviço de informaçõe­s, mas não tinha tomado posse e já os analistas previam o pior. “Parece quase certo que as instituiçõ­es políticas do Iraque irão minar a capacidade de governar de Kadhimi”, augurava Steven A. Cook na Foreign Policy. “A atual desordem demonstra, contudo, que mesmo os piores sistemas políticos podem ser suficiente­mente estáveis para persistire­m perpetuame­nte. Sem entrar em todos os detalhes mesquinhos, a política iraquiana pós-invasão assemelha-se a um sistema de despojos, com a corrupção que lhe está associada e uma fiscalizaç­ão zero, e a maioria dos políticos e partidos políticos cúmplices. Não ajuda em nada que o vizinho mais poderoso do Iraque, o Irão, beneficie da disfunção política que torna Bagdad fraca”, notava.

Figura ligada ao Irão e odiada por Washington pelo papel que teve na insurgênci­a à ocupação norte-americana, o clérigo xiita Moqtada al-Sadr exige que as próximas eleições parlamenta­res sejam realizadas em junho e não adiadas. Além do mais, Sadr quer que o escrutínio seja supervisio­nado pela ONU. As eleições foram inicial

“O Golfo é demasiado importante para ‘partir’, em particular se significa ceder o Iraque a uma mistura imprevisív­el de extremismo, conflito civil, estados falhados e adversário­s como o Irão, a Rússia, a China, e uma Turquia liderada por Erdogan”

mente antecipada­s dando ouvidos à exigência do movimento de protesto de 2019, e refletem a nova lei eleitoral, que reduziu a dimensão dos círculos eleitorais e eliminou a votação com base em listas a favor dos votos dos candidatos individuai­s.

Ao nível da segurança, os sinais não são positivos, desde que em outubro de 2019 recomeçara­m ataques contra instalaçõe­s norte-americanas, incluindo uma tentativa de invasão da embaixada em Bagdad, o que teve como resposta o homicídio, em solo iraquiano, do general iraniano Qassem Soleimani, por parte dos EUA. Só no espaço de uma semana, uma salva de morteiros atingiu uma base aérea em Erbil, na região iraquiana do Curdistão, tendo matado dois iraquianos ao serviço dos militares norte-americanos; no sábado quatro morteiros atingiram a base aérea de Al-Balad, a norte da capital, horas depois de os militares terem atacado um esconderij­o do Estado Islâmico, no que resultou em cinco jihadistas e dois soldados mortos. Por fim, a embaixada dos Estados Unidos voltou a ser alvo de morteiros, mas sem vítimas a reportar. Se recentemen­te as Forças Democrátic­as Sírias, organizaçã­o armada curda que combate os islamistas, entregou a Bagdad 100 elementos do Estado Islâmico, outros reagrupam-se na região montanhosa de Hamrin, uma terra de ninguém entre as jurisdiçõe­s dos peshmerga (exército curdo) e das tropas iraquianas. O mais mortífero (32 vítimas) atentado em anos ocorreu num mercado em Bagdad, em janeiro, com o selo do Estado Islâmico.

É neste ambiente de inseguranç­a que a NATO decidiu aumentar a sua presença, de 500 para 4000 formadores, de forma a levar os conhecimen­tos militares para lá da capital. “As atividades de formação incluirão agora mais instituiçõ­es de segurança iraquianas, e áreas para além de Bagdad”, anunciou na semana passada o secretário-geral da Aliança Atlântica, Jens Stoltenber­g.

Para Anthony Cordesman, do Center for Strategic and Internatio­nal Studies, os EUA não têm outra opção senão continuare­m no Iraque, após terem gasto 765 mil milhões de dólares nas guerras e em combaterem o Estado Islâmico. “O Golfo é demasiado importante para ‘partir’, particular­mente se partir significa ceder o Iraque a uma mistura imprevisív­el de extremismo, conflito civil, Estados falhados – como a Síria e o Iémen – e os seus adversário­s - como o Irão, a Rússia, a China, e uma Turquia liderada por Erdogan.” Mas os norte-americanos são vistos como uma força de ocupação e as mílicias pró-iranianas poderão prosseguir os ataques: “Se não partirem, todos os iraquianos terão o legítimo direito de os confrontar por todos os meios”, ameaça Mohammed Mohie, porta-voz das Brigadas do Hezbollah.

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Francisco vai ser o primeiro Papa a visitar o Iraque, entre 5 e 8 de março, país onde os cristãos têm sido perseguido­s nos últimos anos .

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