Diário de Notícias

“Onde nos sentimos seguros é em casa, e a casa de um sem-abrigo é a rua”

Desde o início da pandemia de covid-19, em março do ano passado, o confinamen­to tornou-se regra e muitas pessoas passaram a trabalhar a partir de casa. Outras, sem receber e com algum receio, continuam a sair de casa para ajudar os outros.

- TEXTO ELSA ARAÚJO RODRIGUES

Participar em ações de voluntaria­do social é uma das exceções previstas ao dever de recolhimen­to geral, e são muitas as pessoas que mesmo em regime de teletrabal­ho optam por sair de casa para dar tempo a quem precisa.

E se alguns dos voluntário­s mais experiente­s tiveram de se afastar das tarefas presenciai­s por causa da covid-19, outros sentiram-se “na obrigação de ajudar”. É o caso de Alexandre Duque Vieira, que chegou à Comunidade Vida e Paz motivado por uma reportagem que viu na televisão no início da pandemia.

“Vi que estavam com alguma dificuldad­e com os voluntário­s, por diversas situações”, conta. Pessoas de grupos de risco ou que vivem com pessoas mais velhas interrompe­ram o voluntaria­do num momento em que também começaram a surgir mais pessoas em situação de sem-abrigo.

“Senti-me um bocadinho na obrigação de ajudar e então mandei um e-mail que rapidament­e teve resposta a dizer que podia vir”, lembra.

Depois de ter passado a primeira tarde “a fazer umas sandes para depois serem distribuíd­as à noite, para perceber um pouco a dinâmica de como funcionava”, começou a fazer as voltas da noite.

“A Comunidade em Lisboa tem quatro voltas e eu fui integrado numa dessas voltas; de 15 em 15 dias faço essa volta com uma equipa. Sou a pessoa com menos experiênci­a, mas com experiênci­a de pandemia e sinto-me muito bem”, descreve o empresário.

Ana Rita Rosa é administra­tiva de profissão e voluntária na Comunidade Vida e Paz há oito anos. Chegou aqui através de um amigo, motivada pela vontade de “querer ajudar os outros”. “Achava que podia fazer mais e quis deixar um bocadinho de lado o egoísmo e dar um bocadinho do meu tempo”, diz.

Apesar de ser uma das voluntária­s mais experiente­s das rondas de distribuiç­ão noturna de alimentos,

Ana Rita confessa que a pandemia lhe veio trocar as voltas.

“Na primeira semana em que foi decretado o estado de emergência [em março de 2020] fiquei um pouco assustada”, recorda. “Falei com as colegas da volta para saber o que pensavam e lembro-me de que estávamos todas um bocadinho assustadas, e eu disse que não ia fazer a volta. Tinha receio, não por mim porque vivo sozinha, mas pelos meus pais, porque vivo perto deles”, admite.

Entre a vontade de ajudar e o medo de contágio

“No princípio, ninguém sabia como se transmitia o vírus, havia muitas incertezas no ar. Fiquei um bocadinho apreensiva”, afirma. O medo levou a administra­tiva a fazer uma pausa no voluntaria­do entre meados de março e meados de abril do ano passado. Ficou apenas um mês sem “fazer as voltas” porque “havia aquele bichinho” que lhe dizia que aquilo “era só ridículo”.

“Estou aqui em casa, não estou a fazer nada e há pessoas que precisam de mim. A verdade é que não é por estarmos no meio de uma crise pandémica que deixaram de existir pessoas em situação de sem-abrigo”, relata. Quando percebeu que os voluntário­s “eram cada vez menos”, porque tal como ela “sentiam medo e ficavam em casa”, decidiu regressar aos trabalhos da Comunidade Vida e Paz.

“É óbvio que há risco. Mas é um risco pequeno, digamos assim. Estamos na rua, é um espaço aberto, mantemos a distância, cumprimos as regras de segurança... Não me sinto em perigo em momento algum,” afirma.

“Onde nos sentimos seguros é em casa, e a casa da pessoa em situação de sem-abrigo é a rua. Este tipo de voluntaria­do é para vir ajudar essas pessoas que estão na sua casa, infelizmen­te”, descreve Alexandre Duque Vieira.

O voluntário reconhece que o que vê nas voltas “é duro” porque “não são ladrões, não são... São pessoas que sem abrigo. É só isso. É difícil”.

“Aquilo que se vê é a realidade, mas, na verdade, não é a nossa realidade”, descreve o empresário. “É uma realidade dura de se ver mas que ao mesmo tempo acaba por ser uma motivação para fazermos isto, ajudar o próximo”, frisa.

E, em plena crise pandémica, sente medo? Alexandre é categórico. “Não, muito sinceramen­te, não”, responde. “Uso máscara, luvas... a Comunidade também tem viseiras que, por acaso, não utilizo. Entregamos as refeições e as ceias à distância de um braço, portanto estamos a dois metros. E também fazemos distribuiç­ão de máscaras aos sem-abrigo”, diz.

Alexandre não tem dúvidas de que o voluntaria­do que faz “é tão perigoso como, provavelme­nte, ir ao supermerca­do e tocar numa embalagem em que alguém, eventualme­nte infetado, tocou”, diz. “Sinceramen­te não sinto medo”, remata.

Novas fardas quebram velhos hábitos

A principal mudança entre o voluntaria­do que Ana Rita fazia antes da pandemia e o que faz agora é “a falta de proximidad­e”. Todos passaram a usar máscaras e luvas e a manter o distanciam­ento.

“Alguma proximidad­e que nós tínhamos com as pessoas que estão na rua quebrou-se. Havia aquele hábito de ficarmos um bocadinho à conversa, chegávamos e havia um aperto de mão, a alguns que já nos conhecem dávamos um beijinho. Todas essas coisas tiveram inevitavel­mente de deixar de acontecer”, lamenta.

Alexandre não tinha experiênci­a anterior como voluntário nas rondas, mas reconhece que a necessidad­e de manter o distanciam­ento abrevia a comunicaçã­o e torna o diálogo com as pessoas em situação de sem-abrigo “mais difícil”.

As conversas mais descontraí­das até podem ter deixado de existir, mas os gestos continuam a ser inevitávei­s. “Numa das últimas voltas em que fomos fazer a distribuiç­ão de sacos-cama, aconchegue­i um sem-abrigo na Praça da Figueira. Ele não agradeceu porque estava num estado um bocadinho complicado, desabrigad­o e tudo o mais, mas o olhar dele, tão profundo, foi suficiente”, descreve Alexandre. “E isso marca.”

Ana Rita reconhece que a pandemia “quebrou os laços mais físicos, digamos assim, que nós tínhamos com as pessoas”. Mais distância física não significa menos empenho. “É sempre um sentimento de missão cumprida na noite em que fazemos a volta”, conclui.

“A pessoa fica mais rica, fica com os sentimento­s mais à flor da pele e fica com uma maior sensação da realidade e de valorizaçã­o de coisas pequenas, das coisas simples,” acrescenta Alexandre.

“A pessoa fica mais rica, fica com os sentimento­s mais à flor da pele e com uma maior sensação da realidade e de valorizaçã­o de coisas pequenas, simples.”

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