Diário de Notícias

Cenoura e cacete na versão Biden

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Theodore Roosevelt destacou-se pela fórmula da cenoura e do cacete que usou para impor a influência dos Estados Unidos nas Caraíbas na primeira década do século XX. Joe Biden, o mais velho presidente americano, parece estar a seguir a fórmula do mais jovem de todos os antecessor­es, pelo menos em relação às ambições nucleares do Irão. E o ataque de ontem contra milícias às ordens de Teerão no leste da Síria bem pode ser entendido como uma cacetada dada depois de os ayatollahs terem rejeitado as primeiras cenouras oferecidas pelo novo presidente. Estas vão da reabertura de negociaçõe­s multinacio­nais até uma revisão das sanções repostas durante a presidênci­a de Donald Trump, passando pela facilitaçã­o das viagens de diplomatas iranianos às Nações Unidas.

Apesar de Biden ter sido o vice de Barack Obama, o presidente que patrocinou o acordo que aceitava o nuclear para fins civis do Irão em troca de vigilância, Teerão adotou uma linha de inflexibil­idade com a nova Administra­ção que reflete a influência da ala mais dura do regime junto do Guia da Revolução, o ayatollah Ali Khamenei. Desde o ataque americano, na era Trump, contra uma alta figura militar, o campo moderado, do qual faz parte o presidente Hassan Rohani, tem menos margem de manobra para compromiss­os.

Mas a inflexibil­idade de Teerão pode ser um bluff, com os iranianos a desejar mais concessões antes de negociar. Talvez acreditem que o facto de vários nomes da equipa diplomátic­a, a começar pelo secretário de Estado Antony Blinken, terem estado nas negociaçõe­s da era Obama os leve a tudo para restaurar um acordo saudado como histórico, mas que Trump rasgou.

Justificad­o como represália pela morte de um americano no Iraque, vítima de ataques lançados da Síria, a intervençã­o de há dois dias foi ponderada, como se Biden quisesse que a cacetada fosse suave. Teve, porém, o simbolismo de ser a primeira ação militar da presidênci­a Biden, que demorou assim cinco semanas depois da tomada de posse, enquanto Trump autorizou ao fim de nove dias um ataque no Iémen contra uma célula da Al-Qaeda.

Theodore Roosevelt teve bons resultados com a aplicação, à sua maneira, da Doutrina Monroe, mas tornar as Caraíbas o pátio das traseiras da América não trazia antes de Fidel Castro dificuldad­es comparávei­s ao xadrez que é o Médio Oriente. A fórmula do cacete e da cenoura arrisca-se a ser mal entendida – por exemplo, se este ataque às milícias xiitas que ajudam o exército sírio é fácil de interpreta­r por Teerão como “falaremos do nuclear mas não permitirem­os que prossigam com guerras por procuração”, o que pensarão os líderes iranianos do novo relatório da espionagem americana que associa a morte do jornalista exilado Jamal Khashoggi ao príncipe herdeiro saudita? Uma cenoura para Teerão, dado Riade ser o campeão da causa sunita, ou simplesmen­te uma gestão paralela de outra pasta importante para Biden, um reequilíbr­io das relações com a Arábia Saudita, aliado importante da América e recente parceiro de conveniênc­ia de Israel (aliado ainda mais importante para a América) no esforço de normalizaç­ão com os árabes?

Biden disse que a América está de volta. Nem sempre esse regresso será fácil, sobretudo num Médio Oriente que nos últimos quatro anos se habituara a um Trump muito mais óbvio (outros dirão simplista) nas simpatias.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal