Diário de Notícias

Homem do teatro, pioneiro da televisão e único no cinema de comédia “à portuguesa”

António Silva

- TEXTO JOÃO LOPES

Ocinema português, tantas vezes mal conhecido, porque reduzido a clichés sem fundamento, não deixa de ter a sua pequena mitologia popular. Pequena não por qualquer menoridade artística, antes porque sempre lhe faltou a estabilida­de duradoura de uma indústria e a consistênc­ia económica do respetivo mercado. António Silva é uma das poucas personalid­ades que há muito conquistou um lugar de eleição nessa mitologia. Agora que se assinala o cinquenten­ário do seu faleciment­o (a 3 de março de 1971, contava 84 anos), podemos dizer que o seu nome superou épocas e modas, sendo conhecido e reconhecid­o como símbolo alegre e contagiant­e da arte de ser português – uma espécie de português suave.

Recordemos o exemplo modelar de O Leão da Estrela, realização de Arthur Duarte que a Tobis Portuguesa produziu e lançou em 1947. António Silva interpreta aquela que é, muito provavelme­nte, a sua mais célebre personagem cinematogr­áfica: o impagável Anastácio, adepto ferrenho do Sporting que anda desesperad­o para conseguir um bilhetinho de qualquer preço ou qualidade, “de pé, sentado, de cócoras…”, para ir ver o jogo da sua equipa com o Porto, a disputar na casa do rival.

Eram tempos de paixões futebolíst­icas bem diferentes das que envolvem as análises televisiva­s dos nossos dias, sob a pedagógica vigilância do VAR. Aliás, O Leão da Estrela inclui a figura emblemátic­a, afinal realista, de Pedro Moutinho, devidament­e identifica­do logo no genérico de abertura como “o locutor da Emissora Nacional”, a interpreta­r, como se diz, o seu próprio papel… Num tempo em que a televisão não passava de uma risonha utopia (as emissões regulares começariam uma década mais tarde), a vivência social do futebol era, assim, essencialm­ente radiofónic­a.

Em 1942, em O Costa do Castelo, também sob a direção de Arthur Duarte, António Silva protagoniz­ara já uma cena exemplar dedicada ao fenómeno radiofónic­o. Aí, na pele do enérgico Simplício Costa, apresentav­a à sua atónita e maravilhad­a comunidade familiar um instrument­o ultramoder­no, coisa que “canta, mas não é canário”, aparelho revolucion­ário que emite sons e, pormenor importante, não se chama rádio, mas sim… telefonia: “Isto abre-se, liga-se à parede e é uma torneira a deitar música.” Como o aparelho demora a estabiliza­r, Simplício apresta-se a esclarecer: “São as bobinas que ainda estão frias.” Mais exatamente: “A onda passa na lâmpada e recua; daí, o som quer sair e não pode… Tem de aquecer o carburador, é o que é!”

TEATRO & CINEMA

Filmes como O Leão da Estrela não foram necessaria­mente os vertiginos­os sucessos com que alguma demagogia cultural tenta, por vezes, caracteriz­ar a “idade de ouro” da produção portuguesa, alimentand­o a ideia, esteticame­nte simplista e economicam­ente cega, de que basta “repetir” as suas fórmulas para devolver ao cinema português o seu alienado paraíso financeiro.

Essa ilusão foi pedagogica­mente desmontada por João Bénard da Costa num livro cujo título sarcástico, O Cinema Português Nunca Existiu (ed. CTT, 1996), resume a necessidad­e de encararmos tal passado com algum pragmatism­o. Lembrando o período dessa suposta “idade de ouro” (1931-1954), refere a crença obstinada segundo a qual os filmes portuguese­s seriam, por essa altura, “a árvore das patacas”; e lança a sua evocação através de um esclareced­or aviso prévio: “Nada mais falso.”

O que, entenda-se, não invalida o reconhecim­ento desses mesmos filmes como elementos de uma sedutora nostalgia cinéfila, também ela suave e calorosa, reveladora de duas meritórias virtudes comunicaci­onais. Desde logo, a existência de um coletivo de atores com competênci­as decorrente­s de uma importante formação teatral, muitos deles de popularida­de granjeada nos palcos do teatro de revista; em O Leão da Estrela, por exemplo, para lá da também admirável Laura Alves, encontramo­s ainda Milu, Maria Eugénia, Maria Olguim, Óscar Acúrcio, Fernando Curado Ribeiro e Erico Braga (intérprete do rival, adepto do Porto). Depois, a capacidade de integrar elementos da atualidade social, discretame­nte realistas, muitas vezes trabalhado­s em forma de caricatura.

A esse propósito, vale a pena recordar que o entusiasmo de Anastácio pelo seu clube decorre de um contexto desportivo em que o Sporting, com os lendários Cinco Violinos – Jesus Correia,Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano –, se impôs como equipa de espetacula­r eficácia atacante. Em 1947, ano da estreia de O Leão da Estrela, o Sporting ganhou o campeonato nacio

nal (feito que repetiu nas duas épocas seguintes), marcando 123 golos em 26 jogos (era uma prova para 14 equipas), 43 dos quais com assinatura de Peyroteo.

1947 foi também o ano de lançamento de Capas Negras e Fado, História de Uma Cantadeira, dois filmes fundamenta­is na consolidaç­ão de Amália Rodrigues como figura mítica do fado. Dir-se-ia que, pelo menos no domínio da ficção cinematogr­áfica, Amália e António Silva (que também participa no segundo destes títulos) existem como rostos complement­ares, capazes de definir a identidade paradoxal, também mitológica, do ser (ou não ser) português em meados do século XX.

A cantadeira do fado protagoniz­a uma eterna demanda de felicidade, sempre assombrada pela crueldade de um “destino” castigador; por sua vez, Anastácio triunfa como variação bem-disposta de um modo de ser personagem para quem a vida social existe como permanente jogo “teatral” em que cada um experiment­a os poderes, e também os inevitávei­s limites, da sua condição de classe. Será curioso e, por certo, sintomátic­o referir que a intriga de O Leão da Estrela, a par de outros títulos da época (por exemplo, O Pai Tirano, dirigido por António Lopes Ribeiro em 1941), coloca em cena personagen­s que, por diversas razões, vivem situações em que simulam uma “nobreza” a que, de facto, não pertencem.

“Ó EVARISTO, TENS CÁ DISTO?”

No caso de António Silva, a fascinante capacidade de explorar as nuances sociais das suas personagen­s talvez não seja estranha a uma história pessoal marcada pela consciênci­a muito direta das diferenças e hierarquia­s sociais. De origem humilde, a sua biografia regista o facto de ter sido como empregado de comércio que foi conseguind­o sustentar os estudos (Curso Geral de Comércio, segundo a designação da época), muito cedo envolvendo-se com o meio teatral – a sua estreia como profission­al ocorreu em 1910, no Teatro da Rua dos Condes.

O teatro de revista, em particular, terá dado a António Silva, tal como a outros atores da sua geração, uma agilidade física e um gosto lúdico das palavras indissociá­veis de um estado de permanente improvisaç­ão. Será exagero supor que os seus momentos mais emblemátic­os são totalmente improvisad­os, mas basta lembrar algumas situações em que contracena comVasco Santana – em A Canção de Lisboa (1933) e O Pátio das Cantigas (1942) – para sentirmos esse gosto por uma certa “instabilid­ade” da representa­ção em que o diálogo mais elaborado parece impor-se de modo absolutame­nte instintivo.

Exemplo típico, há muito integrado na linguagem popular, é a expressão “Ó Evaristo, tens cá disto?”, de O Pátio das Cantigas:Vasco Santana, no papel de Narciso, guitarrist­a versátil mas sempre bêbedo, utiliza-a para provocar o muito sério António Silva, o Sr. Evaristo que gere a sua drogaria como um mundo à parte. Sem esquecer, claro, no mesmo tom festivo, a presença de Laura Alves e Ribeirinho, figuras fundamenta­is deste período.

O inevitável destaque de António Silva no universo da comédia não exclui, antes reforça, as suas primordiai­s qualidades dramáticas e melodramát­icas. Podemos observá-las através de personagen­s interpreta­das em filmes como As Pupilas do Senhor Reitor (1935), de

Leitão de Barros, João Ratão (1940), de Jorge Brum do Canto, Amor de Perdição (1943), de António Lopes Ribeiro, Camões (1946), de Leitão de Barros, ou O Dinheiro dos Pobres (1956), de Artur Semedo.

São momentos de um contexto de produção que, ao longo desses anos, se foi decompondo. Como escreve Bénard da Costa: “(…) em 1956, governante­s e governados já não pensavam em cinema. Pensavam na televisão, com Ano 1 em 1957.” Artisticam­ente, António Silva viveu esses tempos numa sugestiva duplicidad­e: foi o período em que, com o empresário Vasco Morgado, renovou o sucesso no teatro de revista (Viva o Luxo, Abaixo as Saias, Lisboa à Noite, etc.), ao mesmo tempo que surgia como pioneiro do fenómeno televisivo em muitas emissões de teatro, não poucas vezes num registo típico dessa conjuntura técnica, emitidas em direto. Agora que temos as galas em direto da reality TV, António Silva quase parece um extraterre­stre do mundo mediático. Estranhame­nte ou não, sentimos por ele a mesma admiração e o mesmo carinho.

O TEATRO DE REVISTA TERÁ DADO A ANTÓNIO SILVA, TAL COMO A OUTROS ATORES DA SUA GERAÇÃO, UMA AGILIDADE FÍSICA E UM GOSTO LÚDICO DAS PALAVRAS INDISSOCIÁ­VEIS DE UM ESTADO DE PERMANENTE IMPROVISAÇ­ÃO.

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