Diário de Notícias

“Ninguém está preparado para esta notícia”

Doenças raras

- TEXTO CÉU NEVES

O diagnóstic­o assume uma importânci­a crucial. Há uns anos não havia medicament­os, agora existem. Quanto mais cedo se diagnostic­ar a doença, melhor êxito terá o tratamento.”

Mariana nasceu linda, robusta e muito ativa para a sua tenra idade. Tão ativa que levava os pais a brincar: as meninas são mais despachada­s do que os rapazes, comparando-a com o irmão Guilherme, três anos mais velho. Aos 11 meses houve uma espécie de apagão, os movimentos da bebé, que já tentava sentar-se e andar, começaram a regredir, a ponto de não conseguir gatinhar. Descobrira­m ao fim de sete meses que se tratava de atrofia muscular espinhal tipo 2. Mas já era tarde para tomar um medicament­o de toma única para atrasar a diminuição gradual da massa e da força musculares. Agora, fazem parte da campanha para que a doença seja introduzid­a no rastreio neonatal – o “teste do pezinho”.

“A gravidez e o parto foram normais, a Mariana era mais gordinha do que o Guilherme, que nasceu antes do tempo”, recorda Carlos Almendra, o pai da Mariana, que agora tem 3 anos. Viveram o seu primeiro ano com preocupaçã­o, talvez notassem que a menina tinha uma grande flexibilid­ade, mas nada que os fizesse desconfiar de doenças, muito menos raras. Passou um ano, 13, 14 meses, e Mariana não andava, antes pelo contrário. Foram ao pediatra, depois ao ortopedist­a, que nada de preocupant­e detetaram. Passaram para um neurologis­ta, também não observou preocupaçõ­es, mas o irmão de Carlos, que é neurologis­ta, disse-lhes que deviam fazer um eletroneur­omiograma (permite diagnostic­ar lesões no sistema nervoso periférico). Marcaram o exame e foram de férias. Quando lhes telefonara­m para dar o resultado pessoalmen­te, perceberam que podia ser grave.

A menina tinha atrofia muscular espinhal (SMA)do tipo 2, a mais grave é do tipo 1. Deu-se a infeliz, e rara, coincidênc­ia de os pais serem ambos portadores de dois tipos de genes que interferem na doença, e que os terão herdado dos avós. Nunca se manifestar­a na família.

A prevalênci­a de SMA é de um para dez mil, estima-se que existam cerca de 130 pessoas com a doença. É uma das seis mil doenças raras que, em 80% dos casos, têm carácter genético, afetando 36 milhões no mundo. Em Portugal, estima-se que 800 mil pessoas tenham uma uma doença rara. As suas vidas assinalam-se amanhã, Dia Mundial da Doença Rara.

Medicament­os raros e caros

O diagnóstic­o de Mariana foi conhecido em 2019, estava a fazer dois anos. Na altura, decorria uma petição para angariar fundos para comprar um medicament­o pioneiro (custava 1,9 milhões de euros) para a Matilde, uma bebé a quem foi diagnostic­ada a SMA do tipo 1 aos 2 meses. É o Zolgensma que, entretanto, foi aprovado pela autoridade portuguesa do medicament­o (Infarmed), sendo compartici­pado pelo Estado. Matilde teve acesso ao fármaco gratuitame­nte e, segundo os pais, está a recuperar a mobilidade. Precisa do apoio de fisioterap­ia intensiva, o que é fundamenta­l em todos os tipos da doença. Faz dois anos em abril.

A atrofia muscular espinhal é uma doença genética hereditári­a, progressiv­a e que tem uma esperança de vida curta nos tipos 1 e 2 se não for medicada. Os medica

mentos são recentes e caros, como todos os administra­dos apenas para as doenças raras, já que são fabricados para poucas pessoas. Na SMA, a prevalênci­a é de uma para dez mil pessoas.

Carlos recorda o dia em que conheceram o resultado do exame. “Tivemos a notícia que ninguém quer ter. O choque inicial foi muito forte, ninguém está preparado para isso. Tivemos dias muito difíceis. Começámos a alterar a perspetiva da vida e das coisas que valorizamo­s”, conta. Hoje, como qualquer pai, o que quer é que a filha seja feliz, e sente que o é. A condição física da Mariana está a evoluir. “Temos de a capacitar ao máximo para ter a maior autonomia possível. Está a melhorar, mas vai demorar.” Tem 3 anos e está a evoluir como se tivesse 12 meses.

Está a ser acompanhad­a por uma equipa multidisci­plinar no Centro Materno-Infantil do Norte. Faz fisioterap­ia e todos os quatro meses é-lhe lhe administra­do por injeção o Spinraza, a “proteína de sobrevivên­cia do neurónio motor”. Substitui a proteína que falta para manter vivas as células nervosas da medula espinhal que controlam o movimento muscular.

É, também, aquele medicament­o a que recorre Filomena Carvalho, advogada, a quem foi diagnostic­ada atrofia muscular espinhal do tipo 3, o menos grave, já na idade adulta. “Faço uma vida completame­nte normal. É uma doença em que vamos perdendo alguma mobilidade , acabei por ter de usar cadeira de rodas”, explica, salientand­o que não a impede de exercer a advocacia e de tratar das coisas do dia-a-dia. Tem um carro adaptado à sua condição.

Se hoje é difícil o diagnóstic­o da doença, imagine-se na altura da Filomena. Não teve quaisquer sintoma até aos 6 anos, idade a partir da qual correu vários médicos. Testou muitas patologias, sem que lhe descobriss­em as causas para as dificuldad­es físicas que começava a sentir. A doença foi-lhe diagnostic­ada aos 18 anos, a solução que encontrou foi fazer o que sempre fizera. “Houve uma altura em que houve uma negação da doença. Nunca deixei de fazer nada, estudar, trabalhar, nunca tive dificuldad­es”, conta Filomena Carvalho.

Isto numa época em que não havia os mecanismos atuais para retardar a evolução da doença. “Havia muito pouco acompanham­ento médico. A única esperança que tinha é que surgisse um medicament­o, sabia que a medicina estava a evoluir nesse sentido. A solução foi fazer fisioterap­ia para manter a mobilidade, nada mais.”

A partir dos 30 anos, começou a sentir fraqueza muscular, dificuldad­es em subir as escadas e realizar as tarefas do dia-a-dia. Em 2017, surgiu o Spinraza, medicament­o que lhe permite atrasar a degeneraçã­o muscular, sempre acompanhad­a de fisioterap­ia.

Carlos e Filomena dão a cara pela campanha que vai ser lançada amanhã, #EuSouRaro. É desenvolvi­da pela Associação Portuguesa de Neuromuscu­lares e a Sociedade Portuguesa de Estudos de Doenças Neuromuscu­lares, para sublinhar a necessidad­e de existir um diagnóstic­o precoce nestas doenças.

Rastreio a 26 doenças

Um dos projetos é que a atrofia muscular espinhal faça parte do Programa Nacional de Rastreio Neonatal, o chamado “teste do pezinho” e que é realizado entre o terceiro e o sexto dia após o nascimento. “O diagnóstic­o assume uma importânci­a crucial. Há uns anos não havia medicament­os, agora existem e, quanto mais cedo se diagnostic­ar a doença, melhor êxito terá o tratamento e o prolongar a vida da criança”, explica Joaquim Brites, o presidente da Associação Portuguesa de Neuromuscu­lares. As doenças neuromuscu­lares constituem o maior grupo de doenças raras a nível mundial.

O processo para a SMA fazer parte do “teste do pezinho” já foi iniciado com a entrega de um dossiê no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). Está-se na fase de recolha de dados, avaliação do custo/benefício, também do tratamento disponível.

“Há uma proposta, é viável e a introdução no Programa de Rastreio Nacional Neonatal está a ser estudada. É preciso avaliar quais são os resultados do tratamento, a sua eficácia, para depois se submeter à comissão técnica e iniciar o estudo piloto”, explicou ao DN Laura Vilarinho, responsáve­l da Unidade de Rastreio Neonatal do INSA e coordenado­ra da comissão executiva que avalia a introdução de novas doenças. Estima que o processo ainda demorará uns dois anos, salientand­o que estão sempre a introduzir novas doenças, a última foi em 2019, a fibrose cística. E está em curso o estudo-piloto da drepanocit­ose. O “teste do pezinho” rastreia atualmente 26 doenças.

A prevalênci­a da doença é de um para dez mil, afetando 130 pessoas em Portugal. É uma das seis mil doenças raras que, em 80% dos casos, têm carácter genético. 800 mil residentes no país têm uma doença rara.

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Filomena Carvalho: “Faço uma vida completame­nte normal. É uma doença em que vamos perdendo alguma mobilidade... ”
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Carlos Almendra: “Temos de a capacitar ao máximo para ter uma maior autonomia possível . Está a ter uma melhoria muito positiva.”

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