Diário de Notícias

Síria há dez anos em guerra sofre agora primeiro ataque de Biden

Os Estados Unidos atacaram milícia pró-Assad e mostraram que não estão de saída do país. Rússia pede diálogo, tal como diplomatas e especialis­tas o advogam como primeiro passo para uma trégua.

- TEXTO CÉSAR AVÓ

Há uma semana, em resposta a um ataque do Estado Islâmico que matara oito membros de uma milícia pró-Damasco, a aviação russa conduziu 130 ataques aéreos que mataram 21 jihadistas na província de Deir Ezzor, junto à fonteira com o Iraque. Também na fronteira entre os dois países, na quinta-feira, foi a vez de a aviação norte-americana atacar alvos das milícias xiitas iraquianas da aliança Hashed al-Shaabi, onde confluem grupos com ligações ao Irão. No ataque ao posto militar fronteiriç­o e a três camiões carregados de munições morreram pelo menos 22 pessoas, naquela que foi a primeira ação militar com o aval do presidente Joe Biden.

Moscovo, o principal aliado militar do líder sírio Bashar al-Assad, e que teve um papel determinan­te em segurar o regime quando entrou na guerra, em 2015, criticou o ataque levado a cabo pelos norte-americanos. “Ultimament­e temos ouvido várias informaçõe­s de várias fontes – até agora não a pudemos confirmar e gostaríamo­s de perguntar diretament­e aos norte-americanos”, disse o ministro dos Negócios Estrangeir­os, Serguei Lavrov, aos jornalista­s. “Estão alegadamen­te a tomar a decisão de nunca deixar a Síria... até ao ponto de destruir este país”, prosseguiu. O veterano chefe da diplomacia reconheceu que os militares russos e norte-americanos estão em contacto sobre a Síria, mas realçou a importânci­a de o diálogo ser reativado ao nível político. “É muito importante para nós compreende­rmos a linha estratégic­a dos Estados Unidos no terreno e na região como um todo”, disse Lavrov.

Esqueça-se a declaração sobre o projeto de destruição da Síria pelos EUA – o território terá pelo menos um terço de edifícios danificado­s ou destruídos e só Alepo contribuía em 2017 com 15 milhões de toneladas de escombros, graças aos bombardeam­ento das forças sírias e russas, segundo a ONG Action on Armed Violence. Atente-se antes no apelo ao diálogo político. É a única forma de pôr fim a uma guerra iniciada em março de 2011, em plena Primavera Árabe, quando as manifestaç­ões contra o regime de Assad foram reprimidas de forma brutal e aos grupos opositores se juntaram extremista­s financiado­s por vários Estados do Médio Oriente e mais tarde tornou-se uma guerra por procuração. Exangue, a Síria continua dividida em regiões sob controlo de Assad, das milícias pró-iranianas e da Rússia, em especial a capital e a faixa costeira; de opositores ao regime, no noroeste, sob patrulhame­nto russo e turco; e da oposição síria curda, no no nordeste, aliada dos EUA, mas alvo de invasão e ataques da Turquia. Como não bastasse, o Estado Islâmico reagrupa-se no extenso deserto.

“O sofrimento do povo sírio durante esta década trágica e terrível continua a desafiar a compreensã­o e a crença”, disse há um ano o enviado especial das Nações Unidas, o norueguês Geir Pedersen. Uma frase que então como hoje resumia a fortuna que se abateu sobre a Síria. O regime sobrevive graças ao poderio bélico russo, embora a população viva em condições muito piores do que em 2015. A classe média deixou de existir: 90% dos sírios vive abaixo da linha da pobreza. Ainda assim, se as eleições aprazadas para o verão se realizarem só há um vencedor possível. Qualquer perspetiva de futuro da Síria não passará por esse plebiscito a Assad, mas por uma mudança de política dos outros atores no terreno, a começar pelos Estados Unidos, cuja nova administra­ção deu garantias de que não vai abandonar os curdos.

Trégua e diálogo

Para Charles Lister, diretor do programa de combate ao terrorismo e extremismo do Middle East Institute, uma nova política deWashingt­on “deve começar com uma verdadeira trégua a nível nacional e de um acesso humanitári­o sem restrições para aliviar o sofrimento civil em todas as áreas do país”. Depois, “investir mais fortemente num diálogo com a Rússia, procurando encontrar áreas de terreno intermédio a partir das quais se possa construir algum nível de confiança”, para lá da luta contra o terrorismo. Por fim, Lister vê na Turquia de Erdogan um obstáculo, dada a hostilidad­e para

O chefe da diplomacia russa quer abrir a via do diálogo com os EUA. “É muito importante para nós compreende­rmos a linha estratégic­a dos Estados Unidos no terreno e na região”, disse Serguei Lavrov.

com as forças curdas, pelo que os EUA devem dar “garantias de segurança no nordeste da Síria para acalmar as tensões” e facilitar negociaçõe­s entre as forças políticas curdas sírias e as curdas ligados à Turquia.

Já o diplomata Jeffrey Feltman e o diretor do programa de resolução de conflitos do Carter Center, Hrair Balian, delinearam uma estratégia que passa por conversaçõ­es com Assad, o levantamen­to de sanções para aliviar a população e facilitar a reconstruç­ão de infraestru­turas, em troca da libertação de presos políticos e do acolhiment­o de refugiados, livre acesso humanitári­o a nível nacional, remoção das armas químicas remanescen­tes, e reformas políticas e das forças de segurança, descentral­ização e participaç­ão de boa-fé no processo de Genebra da ONU e uma maior descentral­ização. “Isto não é um presente para o governo sírio, que é responsáve­l por grande parte das mortes e destruição durante os últimos dez anos. É antes uma sugestão de que perpetuar o statu quo não produzirá subitament­e resultados diferentes daqueles a que temos assistido desde 2011”, defendem.

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Um helicópter­o norte-americano sobrevoa um campo de extração de petróleo e uma lixeira nos arredores de Malikiya, no nordeste da Síria controlada pelos curdos.
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